FALAR PALAVRAS EM LÍNGUA JAPONESA NA PRÁTICA DO KARATE: UM EXAGERO
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 21/06/2024
Falar palavras em língua japonesa durante os treinos de Karate é encarado por uns como uma necessidade, por outros como algo não obrigatório, enfim, parece que, como muitas outras coisas, está caindo em desuso. Manter a tradição poderia ser um motivo forte para se justificar esse hábito. Pensamos um pouco a respeito passando pelo conceito de “tradição seletiva”, de Raymond Williams, na obra “Marxismo e literatura”.
Gastando um pouco de tempo na internet, vi um interessante vídeo em que a pessoa que publicou fazia uma divertida crítica ao nosso hábito de utilizar palavras em Inglês no meio das nossas falas e escritas em Português e, claro, isso me fez pensar no motivo pelo qual utilizamos palavras em Japonês – ou nihongo, caso prefiram - na prática do Karate. Será mesmo necessário falar os nomes dos golpes e movimentos numa língua que não conhecemos e, portanto, só repetimos sem saber exatamente seu significado? Pra que ficar contando em Japonês até dez? Enfim, algumas questões – que podem ser irrelevantes para a maioria das pessoas -, me vieram à cabeça.
Levantar essas questões pode ser um problema, já que quando algo está enraizado nas nossas práticas, questionar pode dar origem a desentendimentos surgidos da discordância. Porém, a discordância apenas – ou negacionismo, para utilizar uma palavra da moda - não é um bom argumento para que se deixem as coisas como estão, principalmente nos casos em que seja evidente que elas precisam de – no mínimo – uma reflexão com os pés no chão. Há alguns dias, conversando com um colega do Karate sobre o uso das palavras em Japonês nas aulas, depois de cumprimentar Imasaki, um senhor japonês, com um bom dia em Japonês (não vou me arriscar a escrever), ele opinou ser totalmente contrário a essa prática. Ele se mostrou indignado e disse que os norteamericanos já o trataram com desdém pelo fato de ele não saber falar em Inglês e que, portanto, ele também não faz questão de se esforçar para se comunicar em outras línguas. Esse caso de hostilidade foi referente ao uso da língua inglesa, mas, talvez, os japoneses também não sejam muito pacientes com os brasileiros que não sabem falar a língua deles, porém, como as coisas precisam ser vistas por outros pontos de vista, lembro que sempre ouço falar que japoneses se esforçam para se comunicar na nossa língua ou tentar se fazerem entendidos. Tentei argumentar sobre a questão da preservação dos traços culturais japoneses na prática do Karate, mas o homem estava tão indignado que não me deixou nem falar e já foi dizendo que não fazia questão e que acha errado falar em Japonês e que acha que as palavras que se usam no Karate deveriam ser todas traduzidas para o Português. Me parece que ele colocou a questão do uso das palavras em Japonês no mesmo patamar do uso do Inglês, situação em que ele foi mal tratado, mas creio que sejam situações diferentes de uso de uma língua estrangeira.
O caso do uso da língua japonesa está inserido na prática de uma arte marcial que conduz um arcabouço complexo de aspectos culturais variados, entre eles, a própria língua. A prática do Karate-do, como sabemos, não existe apenas para aprendermos a lutar, mas também tem objetivos que se colocam mais no âmbito da subjetividade e da abstração, e podemos dizer até mesmo, da espiritualidade – basta ler Funakoshi para entender esta afirmação. Ela está dentro de algo maior, o budo. Como exemplo da necessidade de entender pelo menos as palavras mais corriqueiras do dia a dia do Karate-do, se eu fosse aqui explicar um pouco sobre budo - coisa para a qual não estou qualificado e a cada dia me convenço mais disso - iria, para tanto, necessitar fazer uso de várias e várias palavras do idioma japonês. É difícil entender o Karate-do desprezando os significados das palavras em Japonês. Ao mesmo tempo é difícil entender essa língua, tanto por causa dos seus caracteres muito diferentes dos do nosso alfabeto, como porque as palavras em Japonês, pelo que sei, muitas vezes, não tem uma tradução fácil, pois muitas delas não são palavras, mas conceitos e, assim, cada um desses termos pode ter significados e expressar ideias variadas.
Dojo Kun escrito por Tetsuhiko Asai sensei – Fonte: https://shinjigenkan.com.br/dojo-kun-explicado/
Quanto à questão do incômodo causado pelo questionamento, ele é sempre um bom ponto de partida para pensar as coisas sob novo ponto de vista, portanto, é válido. Assim, o que pretendo aqui é pensar um pouco – ou problematizar, como dizemos os cientistas sociais - a respeito dos motivos da utilização diária de palavras muitas vezes incompreendidas em centenas e centenas de locais de treinamento de Karate, durante anos e anos, irrefletidamente.
Uma palavra que se pode utilizar para classificar o uso da língua japonesa nos treinos de Karate é “preciosismo”, no sentido de exagero ou desnecessidade, afinal, é mais fácil dizer as coisas em Português do que em Japonês, claro. Isso pode ser traduzido como uma busca por praticidade, o que é perfeitamente aceitável, uma vez que, assim, economiza-se o tempo necessário para se aprenderem as palavras em Japonês e de quebra não se corre o risco de falar besteiras (dizer uma coisa querendo dizer outra), porém, é preciso dizer, só vamos dizer a coisa certa em Português, se soubermos traduzia o Japonês, do contrário, é melhor falar em Japonês, mesmo. Dessa forma, acredito que há uma parcela das/os karateka que consideram realmente desnecessária a utilização de palavras em Japonês, fazendo-o apenas quando estritamente necessário e incluo também nesse grupo os que consideram falar palavras em Japonês no Karate algo como querer ser japonês, algo que se deve evitar, pois são brasileiras/os e não japonesas/es.
Tudo bem, realmente, é mais prático e fácil falar em Português, mas imaginemos alguém dando uma aula de Karate e dando os comandos em Português: “defesa no nível superior com o antebraço direito, soco invertido com a mão esquerda no nível médio, postura avançada com a perna direita à frente... iniciar!”; “postura recuada, ataque com a mão em espada... posição!”; “soco invertido com o braço esquerdo!”; “postura avançada com a perna direita à frente, soco em perseguição... iniciar!”. Não seria muito interessante, não é mesmo? Mas, porquê?
Há uma palavra que é muito utilizada no meio do Karate que pode servir para explicar o uso das palavras em Japonês por onde se pratique essa arte marcial, trata-se de “tradição”. O Karate-do, como já afirmei em outros textos, principalmente em “O que praticar da cultura japonesa contida no Karate-do?”, é uma forma de representação da cultura japonesa no nosso país. Ele traz em si elementos daquela sociedade que são preservados, proporcionando sua sobrevivência em terras estrangeiras. Mas, obviamente, não são todos os elementos da sociedade japonesa que estão representados no Karate-do. Há, portanto, uma seleção: uns são trazidos enquanto outros, não. Tal fenômeno social é estudado por Raymond Williams na obra Marxismo e literatura (1979). O autor desenvolveu uma teoria criando o conceito chamado de “tradições seletivas”. Segundo ele, tradição seletiva é “uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente pré-modelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural (Williams, 1979, p. 118)”. Ele coloca esse conceito dentro de uma perspectiva histórica, ou seja, a tradição seletiva ocorre dentro de um processo histórico e vai preservando certos componentes do tecido social, no interesse do domínio de uma classe específica (Williams, 1979, p. 119).
Portanto, podemos afirmar que a língua japonesa é um desses elementos da cultura do Japão que vêm para o Brasil e ajudam a preservar essa aura de tradicionalidade que há no Karate-do, como um componente importante “no processo de definição e identificação social e cultural” no mundo dessa arte marcial. É possível afirmar também, que o processo acima referido faz parte do que Peter L. Berger e Brigitte Berger chamaram de socialização, sendo definido como “o processo por meio do qual o indivíduo aprende a ser um membro da sociedade [...]” (Berger & Berger, 1977, p. 204), uma vez que o karateka é acostumado a se comportar de certa maneira dentro do ambiente de prática do Karate-do e que tudo o que ele respeita nesse ambiente, nada mais é do que aspectos selecionados de uma outra cultura.
Retomo, então, os exemplos que dei de se pronunciarem os comandos dos exercícios em língua portuguesa, coisa que não parece muito adequada ao Karate-do e que dá a impressão de que algo está fora do lugar. Por que será que ocorre essa impressão? Acredito que o que ocorre é que para que algo seja considerado “tradicional”, precisa abranger certos componentes. Como dito antes sobre as tradições seletivas, elas dão ênfase em algumas coisas atendendo a certos interesses deixando outras em segundo plano e assim se configuram os elementos dessa tradicionalidade que, quando tem um de seus componentes substituídos, parece não ser mais tão tradicional. Nesse sentido, afirmo, mais uma vez, que um dos elementos da cultura japonesa que está dentro do Karate-do e que lhe dá identidade é a língua japonesa e que esse elemento em conjunto com outros, lhe dá um ar de coisa tradicional e, portanto, sem ela (a língua japonesa), ele (o Karate-do) fica incompleto, perde tradicionalidade.
Sobre essa perda de “tradicionalidade”, Williams (1979) afirma que o processo histórico de formação das tradições
É também, a qualquer momento, um processo vulnerável, já que tem de, na prática, pôr de lado áreas inteiras de significação, ou reinterpretá-las ou diluí-las, ou converte-las em formas que apoiam, ou pelo menos não contradizem, os elementos realmente importantes da hegemonia corrente (Williams, 1979, p. 119).
Assim, se alguém afirma que pratica um Karate “tradicional” somente porque não participa de competições ou algo assim, e não compreende o que se diz durante os treinos na língua original da arte marcial, essa é, nas palavras de Raymond Williams, uma tradição vulnerável, uma vez que a língua é, como já afirmei, um desses elementos que dá um ar de tradicionalidade ao Karate.
Afirmei anteriormente que falar em Português nos treinos é prático porque economiza-se o tempo necessário para se aprenderem as palavras em Japonês e de quebra não se corre o risco de falar besteiras (dizer uma coisa querendo dizer outra). Porém, diante dessas afirmações, pode-se dizer que, em primeiro lugar, falar errado é algo que ocorre inclusive na nossa língua nativa e ninguém tem a obrigação de saber ou aprender a falar sem erros as palavras japonesas. Claro, não é preciso chegar à excelência ou à fluência, mas afirmo que deve ser feito um esforço. Penso que com a prática, isso vai melhorando ao longo das graduações, de acordo – é claro - com o esforço do aprendiz e, após a obtenção da faixa preta, o que leva alguns anos, acredito que esse esforço precisa ser maior do que antes, pois penso que a faixa preta exige minimamente certos conhecimentos. Particularmente acho que não aprender o significado de coisas que se ouviu falar várias vezes por semana durante anos e anos, significa alguma coisa. Assim, é possível, sem pressa e com dedicação, melhorar o uso das palavras em Japonês, mesmo sem a necessidade de ser um especialista no assunto. Em segundo lugar – sendo inclusive uma decorrência da colocação anterior -, economizar tempo não deve ser uma preocupação do karateka, pois ele está trilhando um caminho marcial (budo). Nesse caminho, quando achamos que aprendemos o significado de uma palavra, ficamos sabendo que ele é ainda mais profundo e o caminho segue. Fazendo uma comparação, é como quando começamos a aprender as aplicações dos movimentos dos kata: ao aprender uma técnica, pensamos que aprendemos “a” técnica. Alguns treinos depois – ou ainda no mesmo treino – surge uma ou mais variações do que julgávamos ter aprendido definitivamente. Portanto, aprender a usar as palavras japonesas é uma necessidade e um aprendizado que exige paciência, nada mais parecido com a prática do Karate-do.
Mas como buscar esse conhecimento? Eis uma questão a se pensar. Mesmo sabendo que isso pode ser um caminho tortuoso, a primeira alternativa que me vem à cabeça é recorrer à internet. Falo isso porque a rede mundial de computadores oferece, sim, informações que podem fundamentar um conhecimento suficiente para entender minimamente as palavras japonesas utilizadas no Karate. Reforço a opinião de que não é preciso um conhecimento muito aprofundado da língua japonesa para entender o Karate, mas isso não deve ser uma porta para a entrada de uma despreocupação com o aprendizado. A internet como fonte de conhecimento deve ser utilizada com cuidado. É preciso que se busquem fontes de boa qualidade, pois há ali muitas publicações sobre Karate, mas que nem sempre são elaboradas com cuidado, sendo apenas republicação de algum material já não confiável. Os livros são sempre uma fonte que deve ter preferência, pois eles são elaborados de uma forma muito mais criteriosa e, geralmente, quem escreve um livro o faz com preocupações que vão muito além da simples vontade de ter uma publicação numa página de internet. Enfim, essas são só sugestões e o caminho existe e cada um o trilha à sua maneira.
Osu!
Obras Citadas
Berger, P. L., & Berger, B. (1977). Sociologia e sociedade: leituras e introdução à sociologia. (F. M. M., & J. d. Martins, Trads.) Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil: LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.
Pinto, P. (03 de Setembro de 2020). Karatê tradicional, do sonho de mestre Nishiyama à consolidação da ITKF. Acesso em 19 de Junho de 2024, disponível em Budô: https://revistabudo.com.br/karate-tradicional-do-sonho-de-mestre-nishiyama-a-consolidacao-da-itkf/
Williams, R. (1979). Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil: Zahar Editores.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá. Poste aqui seu comentário. Logo vamos verificar. Obrigado! Oss!