NOSSO CONHECIMENTO (IMPRECISO) SOBRE O KARATE-DO E OUTRAS COISAS DA CULTURA JAPONESA

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 19/08/2023

Finalizado em 24/09/2023

A prática das artes marciais japonesas cria em muitos de seus adeptos a vontade de aprender coisas sobre essas lutas, que vão além do que se ensina nos Dojo, ou aprofundar o que ali se acessa de conhecimento. Durante as pesquisas autônomas ou para atender ao que é cobrado pelas(os) professoras(es), várias fontes são consultadas. Questionamos aqui, perpassando os conceitos de “indústria cultural” e “semicultura” de Theodor Adorno e Max Horkheimer e de “socialização” em Peter L. Berger e Brigitte Berger: quais são essas fontes e como elas influenciam a formação do conhecimento?

Toda informação que nos chega e que absorvemos e que passa a fazer parte do nosso conhecimento sobre o mundo, vem de alguma fonte. Desde crianças somos nutridos tanto com informações sensoriais como subjetivas e, contemporaneamente, não somos mais nutridos de informações, mas bombardeados por elas. Logo cedo ocorre o acesso a meios de disseminação da informação, que podem ser os meios tradicionais - digamos assim - e, também, os modernos, que não precisamos enumerar - você deve estar com um deles agora na sua frente.

Entre os meios que resolvemos chamar de tradicionais, estão, claro, os livros. Este que escreve o presente texto não teve a oportunidade de presenciar alguém declarar que os livros são coisas do passado sob a justificativa de que hoje há os tablets, notebooks, audiobooks, celulares, etc. (apesar de alguns comentários que vão nesse sentido), mas, diante do contexto social em que está, pode afirmar, quase com certeza, que muitos dos nossos jovens e crianças pensam assim e, claro, alguns com idade mais avançada também.

Aqui vamos tentar tratar, dentro da nossa grande limitação, das formas que se utilizam para se adquirir conhecimento teórico no mundo do Karate-Do e que influências essas fontes provocam na formação do conhecimento do aprendiz.

Há mais ou menos um século - levando-se em conta que o Karate surge no Japão no início da década de 1920, tempo da chegada de Gichin Funakoshi àquele país -, praticamente só havia três formas de se adquirir conhecimento: por meio da leitura, pela oralidade ou diretamente com um professor ou professora. Hoje em dia, porém, as tecnologias da comunicação expandiram muito essas possibilidades. O aprendiz pode acessar, a qualquer momento, informações sobre qualquer assunto, inclusive sobre as artes marciais. É uma fonte praticamente inesgotável. Mas quantidade nem sempre representa qualidade. O terreno da internet é livre e qualquer um pode, a qualquer momento, publicar o entendimento que quiser sobre as artes marciais.

Da mesma forma, os livros - sim, eles ainda persistem - sobre artes marciais existem em grande quantidade e, da mesma forma, quantidade não representa qualidade. Mesmo assim, quando se escreve um livro, mesmo que haja equívocos, a intenção é fazer o melhor trabalho possível, o que nem sempre é uma preocupação nos chamados sites da internet. Mas, diferente da internet, eles não estão em primeiro lugar na preferência da maioria dos que buscam se informar sobre as artes marciais e há uma dificuldade maior em acessá-los, uma vez que é preciso comprá-los. Já a internet é muito mais barata e prática. Mas a questão aqui não é exatamente o acesso e a praticidade das opções e sim a preferência por uma ou outra fonte e a qualidade das suas informações.

Fonte: http://www.associacaoolimpia.com.br/gichin-funakoshi.html

Em que pese os livros também trazerem informações às vezes equivocadas, a internet os supera em muito nessa particularidade. Ali estão - como já afirmamos - as mais variadas opiniões, com e sem uma boa fundamentação a respeito das artes marciais e sobre os aspectos culturais japoneses que as permeiam. Muitas das vezes, quando há informação a respeito desses aspectos culturais, elas são verdadeiras mistificações produzidas em grande parte pela antropofagia cultural[1] que ocorre no Brasil entre as culturas brasileira e japonesa. Essas informações da internet são, muitas vezes – mas não podemos esquecer que há trabalhos sérios ali -, fundamentadas em coisas que se ouviu falar; copiadas de outras fontes erradas igualmente da internet que vão ganhando notoriedade pela repetição; outras vezes têm como base textos equivocados ou mesmo interpretações equivocadas de bons textos, tomadas como verdadeiras e várias outras coisas duvidosas. Apesar de toda essa questionabilidade de certas informações, elas continuam formando o imaginário e consequentemente o conhecimento de milhares de karateka.

Muitos consideram um preciosismo ou mesmo que a pessoa que se ocupa com essa busca em saber sobre esse lado teórico do Karate-Do de maneira mais sólida tenha um Karate fraco - um equívoco, pois uma coisa não leva à outra -, mas me parece impossível falar sobre Karate-Do sem saber o mínimo de pelo menos o básico de algumas coisas da cultura e história japonesas que estão atreladas a essa arte marcial. Isso seria como querer andar de bicicleta com apenas um pneu. Pode-se até conseguir, mas, uma hora a pessoa vai precisar do outro pneu. A esse respeito, citamos (SANCHES, 2021, p. 22):

[...] Tais elementos, longe de ser um prolixo enumerado de palavras, gestos e conceitos, confere à arte marcial a possibilidade de enobrecer o potencial destrutivo que lhe caracteriza, moldando o praticante nas doutrinas elevadas de interação social e espiritual.

Compreende-se assim que a prática marcial desacompanhada de seus elementos filosóficos originais está condenada a transformar-se irremediavelmente em simples movimentos plásticos ou, em uma visão mais dramática e pessimista, em potencial destrutivo irrefreável com sérios prejuízos à disciplina social. Diante disso, preservar suas tradições significa, de forma simplista, educar e disciplinar seus praticantes, tornando-os mais empáticos e mais solidários conforme a influência das filosofias Xintoístas e Budistas que permeiam o Budo japonês.

Como comparação, poderíamos trazer a prática da Capoeira. Certamente os capoeiristas sabem porque aquela arte marcial existe, conhecem sua origem, a carga cultural e histórica que ela carrega e muitos outros aspectos que, para um leigo ou alguém que não tenha interesse, não fazem parte das técnicas de luta (assim devem pensar alguns karateka a respeito dos aspectos culturais da sua arte marcial). Na verdade, as coisas que enumerei no início fazem parte, sim, da técnica. Tudo que é expresso fisicamente passa antes por uma subjetividade e reflexão.

Assim, toda aquela movimentação peculiar que há na Capoeira é fruto de toda a história, da religiosidade, da mistura com dança e música dos países africanos, da reverência aos antepassados sofridos pela escravidão e a resistência aguerrida a ela e de outras coisas culturais que formaram seu ritmo e suas técnicas (pode-se chamar isso de tradição da Capoeira). No caso do Karate-Do, temos o mesmo fenômeno com expressão física deferente. Suas técnicas peculiares foram formadas dentro de - e por - uma cultura e essa cultura, assim como no caso da Capoeira, com toda sua história, incluídos aí a religiosidade, o militarismo, as guerras, o respeito aos antepassados, o comportamento aguerrido do japonês, etc. (notemos as coincidências), está expressa nas técnicas (pode-se chamar isso de tradição do Karate-Do). Por isso, alguém que diga que entende de Karate-Do - e não apenas Karate - precisa ter algum nível de conhecimento que possa lhe dizer, pelo menos, o que é Karate-Do e como ele se tornou o que é. Ninguém da Capoeira poderia dizer que a Capoeira não é uma forma de expressão cultural e, da mesma forma, deveria ser com os praticantes de Karate-Do.

Depois de todo esse adendo, outra coisa que costuma servir de fonte de informação para o público das artes marciais é o cinema. Geralmente, filmes fantasiosos recebem a atenção do público e aquilo acaba formando um conhecimento totalmente distorcido. Os filósofos Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1976) abordam essa questão por meio do conceito de “indústria cultural”. Segundo eles, as várias formas de disseminação de cultura de massas como música e cinema, tornaram-se, com o tempo, apenas produtos empacotados para serem vendáveis e facilmente consumíveis, para fazerem o público não pensar ou refletir sobre o tema da obra apresentada (quando há um tema), não gerando discussões ou contestações, uma vez que o público recebe exatamente aquilo que esperava, ou seja, os filmes e as músicas causam exatamente as sensações que o público esperava (não os incomoda nem provoca) e assim as massas são, inclusive, controladas, aquietadas.

Essa característica da indústria cultural provoca no público um efeito de acomodação. As pessoas consomem uma arte que não as perturba e elas, por sua vez, não se preocupam em ir além daquilo que lhes foi passado, dando origem a um conhecimento incompleto (mas que lhes dá a impressão de saber algo autêntico), o que o filósofo já citado Theodor Adorno denominou de “semicultura”. Esse fenômeno é muito comum nos Dojo no Brasil, infelizmente.

A semicultura no Karate-Do

Como praticamos algo (o Karate-Do) que vem de uma cultura muito diferente da nossa, e que tem variados aspectos, podemos fazer a opção de praticá-lo de forma superficial, buscando só um ou poucos desses aspectos, ou podemos tentar buscar o máximo que pudermos abarcando tanto sua parte física como sua parte mais teórico/filosófica. Pensando em motivos para optar pela segunda alternativa, podemos dizer que essa é importante porque, assim fazendo, estaremos contribuindo para o nosso correto e mais completo que for possível aprendizado a respeito tanto do Karate-Do como da cultura onde ele surgiu e se desenvolveu e, ainda, para que essa cultura que veio para o nosso país não se perca, correndo o risco de se tornar só mais um produto capitalizado e vazio.

Afirmar que o Karate pode se tornar ou mesmo já se tornou um produto capitalizado e vazio, ou seja, um mero produto do sistema capitalista, parece muito pesado, mas é uma realidade, queiram ou não. Toda a nossa sociedade é formada dentro de um sistema que se funda sobre o capitalismo, sobre a necessidade de gerar lucro, de vencer o outro, e o mundo do Karate não está fora disto. Assim, (SANCHES, 2021, p. 22) afirma:

Se continuarmos refletindo sobre o Karate-Do moderno, chegaremos inevitavelmente a outro aspecto consequente do processo evolutivo visto acima: a sua comercialização. É natural que a ocidentalização, a esportivização e o direcionamento capitalista da sociedade gerassem consequências significativas no ensino da arte marcial. A própria adaptação do Tode em Karate-Do foi influenciada pela Restauração Meiji, que a partir de 1868 propiciou a abertura econômica e cultural japonesa, derrubando de forma praticamente abrupta a hermética cultura das “elites sociais”.

Mas seguir por essa segunda opção (praticar um Karate-Do de forma mais aprofundada em seus aspectos culturais) implica em estudar, e estudar pode nos levar a certas descobertas que podem causar desilusões, ou seja, podemos ficar tristes porque estávamos felizes dentro de uma ilusão e essa ilusão, de uma hora para outra, se vai. Deve-se, portanto, fazer uma escolha. Talvez em nome da honestidade consigo e com os colegas de prática, se escolha seguir em frente e pôr em prática na sua própria vida essas descobertas ou, ao contrário, deixar pra lá e que as coisas continuem como estavam, sem perturbação. Geralmente, se escolhe a segunda alternativa.

 Na nossa opinião, nesse caso, o maior prejuízo é para o próprio Karate-Do e para a cultura japonesa, tão rica e, nesse caso, tão empobrecida, uma vez que se torna vítima de uma sua disseminação feita atendendo a interesses nobres por um lado, já que pode estar atendendo a necessidades urgentes de não se perder o chamariz para seu público, mas por outro, causa o esfacelamento dessa mesma cultura. Isso ocorre porque muitos professores e professoras de Karate-Do não querem causar perturbação em seus alunos, nem nos pais deles, nem em seus colegas de Karate e nem mesmo em si próprios – e não podemos deixar os patrocinadores de fora -, e preferem não pôr em prática um conhecimento mais aperfeiçoado e mais honesto sobre o Karate-Do e a cultura japonesa, sob o temor de que, sabendo que a história não é bem assim, esses alunos e colegas vão perder o encanto pelas coisas que os atraíram e formaram seus imaginários desde criancinhas, vão se afastar do Karate-Do e com isso, vão afastar os patrocinadores, com o que discordo. Tive essa discussão recentemente em um grupo de estudos e defendi este ponto de vista discordante.

Creio que há aí duas coisas a serem consideradas: uma é o conceito de socialização e outra é a capacidade das crianças, que anos mais tarde serão adultos e adultas, de receberem um conhecimento mais aperfeiçoado sobre a arte marcial que talvez contradiga o que tinham aprendido.

A socialização no Karate-Do

A questão da socialização se refere a o que se fornece às crianças e também aos adultos para que sejam formadas suas subjetividades. Sobre a socialização das crianças, Peter Berger e Brigitte Berger afirmam:

[...] São os outros que criam os padrões por meio dos quais se realizam as experiências. É só através desses padrões que o organismo consegue estabelecer relações estáveis com o mundo exterior – e não apenas com o mundo social, mas também com o da ambiência física. E esses mesmos padrões penetram no organismo; em outras palavras, interferem em seu funcionamento. São os outros que estabelecem os padrões pelos quais se satisfaz o anseio da criança pelo alimento. E, ao procederem assim, esses outros interferem no próprio organismo da criança. O exemplo mais ilustrativo é o horário das refeições. Se a criança é alimentada somente em horas determinadas, seu organismo é forçado a adaptar-se a esse padrão. E, ao realizar o processo de adaptação, suas funções sofrem uma modificação. E o que acaba acontecendo é que a criança não apenas é alimentada em horas determinadas, mas também sente fome nessas horas. Numa espécie de representação gráfica, poderíamos dizer que a sociedade não apenas impõe seus padrões ao comportamento da criança, mas estende a mão para dentro de seu organismo a fim de regular as funções de seu estômago. O mesmo aplica-se à secreção, ao sono e a outros processos fisiológicos ligados ao estômago (BERGER & BERGER, 1977, p. 201).

Assim, com este exemplo simples, os autores mostram que existe um processo em que a criança é acostumada de determinada forma para que se encaixe nos padrões da sociedade em que nasceu. A criança não é, ela se torna. Da mesma forma ocorre no ambiente do Karate-Do: os alunos e as alunas, independentemente de serem adultos ou crianças, recebem uma socialização para se tornarem karateka. Se tornam aquilo que essa socialização lhes impõe. A esse respeito, os mesmos autores fazem as seguintes colocações:

Vemos que uma das maneiras de encarar o processo de socialização corresponde àquela que se poderia designar como a “visão policialesca”. Segundo ela, a socialização é vista principalmente como uma série de controles exercidos de fora e apoiada por algum sistema de recompensas e castigos. O mesmo fenômeno pode ser examinado sob outro ângulo, que pode ser considerado mais benigno. A socialização passa a ser considerada um processo de iniciação por meio do qual a criança pode desenvolver-se e expandir-se a fim de ingressar num mundo que está ao seu alcance. Sob este ponto de vista a socialização constitui parte essencial do processo de humanização integral e plena realização do potencial do indivíduo. A socialização é um processo de iniciação num mundo social, em suas formas de interação e nos seus numerosos significados. De início, o mundo social dos pais apresenta-se à criança como uma realidade externa, misteriosa e muito poderosa. No curso do processo de socialização este mundo torna-se inteligível. A criança penetra nesse mundo e adquire a capacidade de participar dele. Ele se transforma no seu mundo.

Acredito que a partir do momento em que as professoras e os professores passarem a formar o conhecimento de suas alunas e seus alunos com informações mais precisas e honestas sobre o Karate e sua história, sem fantasias, sem desonestidades e mistificações ou para atender apenas a interesses externos aos Dojo e, da mesma forma sobre a cultura japonesa, no que for necessário para entender o Karate-Do, essas alunas e esses alunos vão - nesse processo honesto de socialização - crescer sem motivos para futuras desilusões e creio, também, que esses futuros karateka serão um verdadeiro diferencial no caminho e serão, também, gratos a quem lhes repassou os conhecimentos. Inevitavelmente essas pessoas serão o futuro do Karate-Do e seus feitos desfarão o prejuízo causado por uma disseminação de informações distorcidas realizada no passado.

O que foi feito errado pode ser corrigido. Ainda há tempo.

Sobre a capacidade de as crianças ou adultos receberem, agora ou mais na frente, conhecimentos que ponham por terra o que vinham aprendendo até então, basta que façamos a nós mesmos a pergunta: será que se eu ficar sabendo que o ou a sensei fulano de tal, conhecido ou conhecida por ser grande praticante do Budo, um exemplo a ser seguido, é na verdade uma pessoa deplorável, ou se eu descobrir que não existe Bushido como me disseram até ontem, ou ainda, que os samurai, não eram pessoas sem defeitos, eu (sim, eu mesmo) vou, por esses motivos,  abandonar o Karate-Do, ou tenho a capacidade de superar isso? Caso a resposta seja negativa, parte (só parte) da culpa não será minha, mas das pessoas que me formaram um adulto fraco. Porém, se a resposta for positiva, ou seja, se eu tiver a capacidade de superar uma mentira/equívoco do passado e fazer do novo conhecimento a base do meu caminho, estará provado que os erros do passado podem ser corrigidos e que não será por causa da superação dos erros do passado que o Karate-Do vai morrer, pelo contrário, tanto ele como sua autêntica cultura vão prosseguir.

Ora, o que é que está dado neste mundo que não pode ser modificado e melhorado? Sobre isso, (SOUSA, 2022, p. 7) afirma:

[...] as instituições sociais são, por seu caráter de coisas construídas, todas revogáveis, embora não conforme apenas nossas vontades individuais e nem sempre no tempo pretendido por essas vontades. Mas, ao menos isto é certo: tudo o que existe como instituições humanas, datadas historicamente, e, por isso, inteiramente modificáveis, substituíveis, e por decisão humana, nunca por mágico efeito do “tempo”. [...] Dito de outra maneira: nós, humanos, como indivíduos, grupos, classes, sistemas sociais ou governos políticos, optamos por manter diversas instituições sociais, como aí estão e atuam, ao invés de optarmos por modifica-las, substituí-las.

Hoje, a desculpa de que o conhecimento sobre as coisas da cultura japonesa não é acessível não tem lugar, pois a qualquer momento se pode acessar informações confiáveis a respeito, portanto, manter vivas certas “verdades” que podemos classificar como falácias a respeito das coisas do Karate-Do e, portanto, do Budo, é uma decisão. Tal decisão não é, porém, apenas das e dos professoras e professores, mas, também de suas e seus alunas e alunos, uma vez que a todos está disponível o conhecimento, tanto pelos meios de disseminação que chamamos de tradicionais como pelos que chamamos de modernos, e também pelo fato de que todos são livres para explorar esses conhecimentos, não precisando da permissão de alguém.

A mim não me resta dúvida de que o Karate-Do e parte da cultura que deve estar a ele agregada correm grande perigo por conta da influência causada pelas futilidades da modernidade apressada. Ela provoca nas pessoas uma ânsia – ou ansiedade, para utilizar uma palavra mais em moda - de consumir cada vez mais rápido, tanto coisas, como informações (que vão se tornando cada vez mais de má qualidade), não permitindo que elas se aprofundem demorada e pacientemente, dando preferência aos pratos prontos da indústria cultura. As e os karateka tornam-se, assim, consumidoras e consumidores de semicultura, inclusive no mundo do Karate.

Porém, o antídoto para isso é a busca e disseminação de informação cada vez mais correta e a superação do medo de estar deixando para trás conhecimento construído sobre um terreno frágil de achismos e repetições mecânicas irrefletidas, em nome de mudanças que podem incomodar quem estava confortável, mas que farão surgir uma geração fundada firmemente em cima de um saber que não teme ser confrontado.

Obras Citadas

1.    BERGER, P., & BERGER, B. (1977). Sociologia e sociedade: Leituras e introdução à sociologia. (M. M. FORACCHI, & J. d. MARTINS, Trads.) Rio de Janeiro, RJ, Brasil: LTC - Livros Técnicos e Científicos Editora S.A.

2.    SANCHES, E. J. (2021). Ikken Hissatsu: As origens do Karate-Do. União da Vitória, PR, Brasil: Kaygangue LTDA.

3.    SOUSA, A. F. (2022). Utopia para o presente: pelo fim de condições que produzem o sofrimento humano evitável (1ª ed.). Jundiaí, SP, Brasil: Paco Editora.

 

 



[1] Antropofagia cultural é o termo que expressa o fenômeno cultural em que, ao ocorrer o choque entre duas culturas, uma absorve ou se alimenta da outra, causando não necessariamente o desaparecimento de uma cultura, mas o surgimento da outra nesse processo de mistura.

 

O que praticar da cultura japonesa contida no Karate-Do?

 O QUE PRATICAR DA CULTURA JAPONESA CONTIDA NO KARATE-DO?

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 08/07/2023

A partir de conversas informais com colegas de prática do Karate-Do e de informações a respeito do que pensa Juarez Alves sensei, passamos a refletir a respeito do que praticar da cultura japonesa contida no Karate-Do. É possível a nós brasileiros inserir nas nossas “formas de vida” coisas da cultura japonesa? É necessário fazer isso para que alguém possa se considerar karateka? Um grande karateka como Juarez Alves defende que as barreiras culturais são o principal problema para tanto e afirma não ter a intenção de copiar tal cultura estrangeira, mas, será que ele mesmo não o faz, pelo menos à maneira dele?

Conforme já afirmamos em (SILVA, 2022), Karate-Do é uma representação da cultura japonesa em território brasileiro. A partir dessa constatação passamos a pensar sobre a influência daquela cultura sobre a nossa. Seguindo por esse caminho, inevitavelmente vamos chegar à conclusão de que a partir do momento em que duas culturas se tocam, ocorre uma mistura, e nenhuma das duas se manterá intacta frente à outra. Sobre isso, creio, não há controvérsia. Porém, nossa reflexão neste momento se faz a respeito da questão de como nos posicionar diante dos traços culturais japoneses trazidos até nós por meio da prática do Karate-Do. Devemos nos esforçar para, de alguma forma, pôr em execução em nossas vidas algo das formas de vida japonesas? E isso é possível?

A opinião de Juarez Alves, um dos mais longevos e respeitados karateka do nosso país, é muito relevante. Nós, meros iniciantes na prática de uma arte tão complexa como é o Karate-Do, geralmente não temos a capacidade de compreender de imediato afirmações de alguém como ele que tem décadas de prática praticamente diária do Caminho das Mãos Vazias. Certamente a reflexão que fazemos agora é algo já mastigado e digerido em sua mente de karateka há muito tempo e deve, de vez em quando, voltar a ser tema de seus pensamentos e, com a experiência dificilmente alcançável que tem, o sensei já formulou seu entendimento a respeito.

O Dojo Kun e o Budo

Em recente entrevista (ALVES, 2023), Alves sensei foi solicitado a responder a respeito do Dojo Kun e do Budo, momento em que ele entrou no assunto aqui abordado, ou seja, a possibilidade de se praticar, no Brasil, os aspectos culturais do Karate-Do. Nos chamou a atenção a tranquilidade e segurança das colocações dele, coisa só possível a quem transformou o Karate-Do em um verdadeiro modo de vida.

A respeito do Dojo Kun, afirmou que a diferença de culturas entre brasileiros e japoneses é um obstáculo à sua prática. Também afirmou que essa diferença de culturas dificulta muito a compreensão dos ocidentais a respeito de outro conceito importante, o Budo, e que para o próprio japonês moderno essa compreensão sobre o Budo é difícil. Sobre Budo, o sensei afirmou: “Não tenho muito o que falar do Budo porque não conheço muito essa área aí…”, mas, nos perguntamos: será que ele não pratica tanto os princípios do Dojo Kun como os do Budo, de alguma forma? Acredito que o sensei me daria razão se eu dissesse a ele: sensei, tem coisas que, mesmo não conhecendo, a gente pratica, às vezes melhor do que alguém que, sem nenhuma modéstia, afirma conhecer.

Podemos inferir, a partir de alguns de seus comentários que, mesmo que não seja sua intenção ser um brasileiro “ajaponesado”, e de não procurar imitá-los, o sensei põe em prática o Dojo Kun por meio da sua dedicação incansável ao Karate-Do. Cometendo os erros que quase todos cometemos e buscando a mudança de uma forma que poucos de nós buscamos (por meio da prática do Karate-Do), cremos que ele pratica, sim, o Dojo Kun, e ainda mais, o Budo que é, no final das contas, uma busca pelo melhoramento moral do ser, por meio da prática física de uma arte marcial.

Apesar da justa dificuldade apontada pelo sensei, a respeito das barreiras culturais entre Japão e Brasil, a própria prática do Karate-Do que, por ser fundamentada nos princípios do Dojo kun e do Budo,  trás em si fortes traços culturais da sociedade japonesa, e já molda nosso comportamento e nossa expressão física, de certa forma, à maneira japonesa de ser, mesmo que apenas no espaço reservado para isso, o Dojo. Portanto, é possível afirmar que, em certa medida, mesmo que não seja possível praticar certos costumes do povo japonês sendo um brasileiro socializado no brasil, o Karate-Do possibilita - até porque coloca como condição à sua prática - uma vivência deles fora do Japão.

Para justificar uma afirmação é sempre bom citar algum exemplo de que ela tem, pelo menos, verossimilhança. Neste caso, poderíamos trazer exemplos de outras culturas presentes entre o povo brasileiro, que não são de origem brasileira, mas que possibilitam a seus adeptos vivenciar um pouco delas fora de seu país, porém, a quantidade desses exemplos (análogos ao do Karate-Do) seria tão grande que não caberia neste trabalho, uma vez que o Brasil, ao contrário de países como o próprio Japão, é conhecido internacionalmente por abarcar várias culturas diferentes.

A própria vivência de Alves sensei parece mostrar que é possível, pelo menos, adotar alguns aspectos de uma determinada cultura longínqua e aplicar à nossa vida. No caso dele, essa aplicação se concretiza em sua vida particular, pois ele vive o Karate-Do de forma pessoal, como todos nós, porém, é inegável que sua história influenciou - digo sem medo de estar exagerando - milhares de pessoas ao longo de toda sua trajetória, ou seja, por meio dele, a arte do Karate-Do passou a ser uma influência cultural japonesa difusa no Estado do Rio Grande do Norte ao longo de décadas.

Sobre ser um karateka

Perguntamos no início, se é preciso aderir a traços ou elementos culturais dos japoneses para que alguém se considere um karateka. A resposta a essa pergunta precisa de alguma contextualização a respeito de que traços ou elementos seriam esses e, também, o que é ser ou se considerar um karateka. Vamos começar falando a respeito desse controverso termo (alguns o consideram dessa forma).

Para uns, essa “classificação” de karateka serve para todos que praticam o que se chama genericamente de Karate, seja qual for a escola/estilo, considerando-se indiferente também se o que se pratica é uma arte marcial ou um esporte de luta que limita a essencial e necessária marcialidade que deve haver nela. Para outros, deve haver uma diferenciação - nos incluímos nesse grupo -, pois, ao contrário do que se diz no senso comum, o Karate não é um só, ou seja, Karate esportivo não pode ser considerado Karate da mesma forma que uma arte que não vise a simples busca por disputa esportiva, mas também o aprendizado de valores além dessa prática esportiva. Nesse sentido, (ALVES, 2023) afirma: “[...] arte marcial não é esporte. Você pode até tentar juntar os dois, mas você vai ter que tirar 50% do poderio da arte marcial”. Com fundamento tanto nesta citação como no que colocamos na nota de rodapé desta página, nosso entendimento é de que as duas coisas não devem ser admitidas como sendo a mesma coisa ou dentro de uma mesma classificação.

Assim, crendo que para coisas diferentes devem haver classificações diferentes, adotamos aqui que o termo “karateka” designa alguém que busca a prática de uma arte, algo além de apenas uma prática esportiva, enquanto que “atleta de Karate esportivo” designa outra coisa, ou seja, a prática de um esporte de luta com regras e finalidades completamente diferentes da arte marcial - claro que essa é uma opinião pessoal e pode ser desconsiderada por qualquer um. Então, voltando ao raciocínio inicial, perguntamos: é preciso aderir a traços ou elementos culturais dos japoneses para que alguém seja um karateka? Como estamos aqui tomando como exemplo fundamental a prática de Juarez Alves sensei, e não nos resta dúvida de que ele é um verdadeiro karateka, vejamos se, em decorrência de sua prática de Karate-Do, algo da cultura japonesa se faz necessariamente presente em sua vida.

Não vamos afirmar que é necessário aderir, ou seja, que é necessário um mergulho na cultura japonesa, uma transformação radical nos hábitos, como se estivéssemos aderindo a uma religião, mas afirmamos que é preciso vivenciar de alguma forma traços culturais do Japão. A própria prática do Karate-Do dentro do Dojo já necessita de um comportamento diferente de como se comporta um brasileiro: é uma condição. Ali temos que obedecer a normas da cultura japonesa, falamos, inclusive, palavras da língua japonesa. Todos os aspectos que compõem o ambiente do local de prática do Karate-Do são estrangeiros e vêm do ambiente cultural japonês. Claro que não praticamos Karate-Do dentro de um Dojo tradicional, mas a atmosfera, o clima de uma aula de Karate-Do, mesmo nos nossos ginásios e academias, parece ter algo transportado de lá (Japão) pra cá. É, portanto, necessário que, pelo menos durante a prática do Karate-Do, nos comportemos de uma maneira que busque nos aproximar das formas de vida japonesas. Mas, e fora dos Dojo?

Uma forma da cultura japonesa muito próxima do Karate-Do: o Bonsai

Sabemos que Alves sensei admira tanto o que a cultura japonesa pode nos oferecer que não se limita a praticar apenas a arte do Karate-Do: ele é considerado também uma referência na arte do Bonsai. Isso toma uma importância grande na presente argumentação em favor de que os traços culturais japoneses trazidos pela prática do Karate-Do nos influenciam até mesmo fora dos Dojo, uma vez que, além de se dedicar a um forte traço cultural dentro do local de prática, o sensei também o faz fora dele, por meio do Bonsai. Fica evidente que há um paralelo entre as duas artes e sobre isso, Alves sensei afirma: “a cultura oriental, apesar de eu não copiar muito, mas eu queria conhecer outra cultura do Japão pra fazer uma certa comparação com o karate”. Mais a diante ele afirma no mesmo sentido: “Para mim entender mais o Karate, eu busquei outra arte”. Inegavelmente, Juarez Alves é nosso maior exemplo, mas posso citar que tenho conhecimento de outro professor que tive, que também tem o mesmo hábito do cultivo do Bonsai paralelamente ao Karate-Do. Mesmo não tendo outros exemplos para citar, podemos afirmar com certa segurança, que essa prática paralela de uma arte marcial japonesa com outra representação cultural do mesmo país, não é incomum.

Ainda podemos apontar outro traço da cultura japonesa presente na vida de Alves sensei, quando ele afirma que sua prática do Bonsai se justifica a partir de um costume japonês que diz ser preciso haver três coisas para se viver com equilíbrio: uma família, uma arte e uma profissão. Isso nada mais é do que um princípio norteador das formas de vida japonesas, é uma filosofia japonesa aplicada à vida ocidental no exemplo de Juarez Alves sensei. Ele pontua ainda que, no Japão - diferente do Brasil, onde é um entretenimento - o Bonsai é uma cultura.

Fonte: https://yamadori.co.uk/2016/06/27/mr-miyagi-and-the-karate-kid-a-gift-from-brazil/

Portanto, vemos que é plenamente possível, inclusive, benéfico, incluir em nossas formas de vida aspectos da cultura japonesa. Assim, de acordo com a definição particular que demos aqui de karateka, cremos que é necessário que, minimamente, alguns traços culturais japoneses estejam presentes na rotina de um praticante de Karate-Do, considerando-se essa prática algo além do que busca um atleta de Karate esportivo.

Oss!
















Obras Citadas

  1. ALVES, J. G. (30 de junho de 2023). Entrevista SENSEI JUAREZ ALVES para MIYAMOTO KARATÊ STORE - Entrevista 02. (M. Store, Entrevistador) Acesso em 31 de junho de 2023, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=q-F7uVAecqc

  2. Dojo Kun explicado. (06 de Setembro de 2021). Acesso em 01 de Julho de 2022, disponível em Instituto Shinjigenkan do Brasil: https://shinjigenkan.com.br/dojo-kun-explicado/ 

  3. HABERMAS, J. (2002 (edição brasileira)). A inclusão do outro. Estudos de teoria política. São Paulo, São Paulo, Brasil: Edições Loyola. Acesso em 01 de Julho de 2023

  4. SILVA, H. P. (15 de Dezembro de 2020). Karate-Do e Bonsai: duas ilusões de ótica. Acesso em 07 de Julho de 2023, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate-Do: https://estudosdekarate.blogspot.com/2020/12/karate-do-e-bonsai-duas-ilusoes-de-otica.html

  5. SILVA, H. P. (10 de Março de 2022). Diáspora, anacronismo e tradição no Karate. Acesso em 01 de Julho de 2023, disponível em Meus aprendizados no Karate-Do: https://estudosdekarate.blogspot.com/search?q=anacronismo

  6. TAIRA, C. (Ed.). (22 de dezembro de 2010). Budo: o segredo da filosofia oriental. Acesso em 01 de julho de 2023, disponível em Made in Japan: https://madeinjapan.com.br/2010/12/22/budo-o-segredo-da-filosofia-oriental/


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