Se eu praticar outra arte marcial meu Karate vai melhorar?

SE EU PRATICAR OUTRA ARTE MARCIAL MEU KARATE VAI MELHORA?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 14/11/2021

 

Acredito que contar mais uma vez a história de como o Karate se expandiu pelo mundo é desnecessário, pois ela é facilmente encontrada, apesar de haver fontes que cometem erros nesse trabalho e prestam um desserviço a quem se interessa pelo assunto. Mesmo assim, acredito que para construir este texto é necessário introduzi-lo minimamente com este tema.

Não vou dizer que tenho a capacidade de realizar uma descrição dessa história de forma satisfatória e sem os erros que tanto encontramos por aí, mas, de forma geral, podemos dizer algumas coisas tentando não cometê-los. Em (SILVA, Karate-Do e Bonsai: duas ilusões de ótica, 2020) – deste mesmo autor – encontramos rápidas informações que nos atendem neste momento:

O Karate-Do desenvolve sua forma japonesa de maneira mais evidente após a morte de Gichin Funakoshi, ocorrida em 1957 – apesar de isso ser um processo que se iniciou antes, por volta de 1922, quando ele foi ao Japão, e muitos dizem que até antes na ilha de Okinawa, e continua ocorrendo até hoje.

Porém, essa arte marcial já existia antes disso nas ilhas Ryukyu, o arquipélago de Okinawa. Sabe-se que muito das técnicas de luta desenvolvidas nessas ilhas foram trazidas da China e ali receberam sua contribuição local, tendo sido criados posteriormente estilos de Karate, segundo se conta em algumas versões, para atender às exigências que o Japão fazia para que essa arte marcial fosse aceita lá.

Assim, em linhas gerais, surge o Karate-Do no Japão, vindo de Okinawa e mais remotamente ainda, pode-se dizer, da China. Porém, a fama fica com os japoneses.

A partir deste brevíssimo relato podemos compreender que o Karate, ainda sem a partícula “Do” que passou a ser parte do seu nome já no Japão - apesar de termos em nossa memória uma vaga informação de que já em Okinawa ela era usada - teve sua origem no arquipélago de Okinawa, a partir de técnicas desenvolvidas ali e de outras trazidas da China. Já no Japão, quando adquiriu sua forma mais famosa que é a forma esportiva/competitiva, o Karate teve que passar por adaptações que incluíram a exclusão de várias técnicas que visavam a defesa pessoal, pois eram demasiadamente traumáticas para competições esportivas e para as finalidades educacionais, coisa que ocorreu com outras artes do Budo e, indo mais longe, acredito que com todas as artes do Budo, pois essa adaptação é uma condição necessária para que essas artes sejam consideradas Budo. Desde então, essas técnicas foram sendo praticadas de forma cada vez mais restrita e, naturalmente, sendo deixadas de lado e esquecidas em favor do aspecto esportivo. É aí que as coisas passam a nos interessar na presente reflexão.

Com o passar dos anos e décadas, essa perda da marcialidade do Karate-Do provocou seus efeitos. Cito alguns que tenho observado:

1.    Ridicularização do karate

Tendo o Karate deixado de lado suas técnicas originais dando preferência apenas a uma prática esportiva que delas se distanciou cada vez mais, passou a ser visto como uma luta em que não se pode fazer contato[1], sob pena de serem punidos os atletas que o fizerem[2], inclusive produzindo lutadores que, em muitos casos, não tem capacidade de aplicar nem de se defender de golpes. Isso deu uma fama muito ruim ao Karate-Do;

2.    Necessidade de resgate

Surge, décadas depois, a necessidade de resgatar as técnicas deixadas de lado, para que o Karate-Do retome seu posto de uma arte marcial dona de técnicas poderosas e eficientes em luta real. Não é fácil essa recuperação, uma vez que algo que é cada vez menos praticado vai sendo desaprendido e esquecido. Outra questão que decorre daí é que na tentativa dessa recuperação, pode ocorrer a inclusão de novas técnicas que supostamente haviam sido do Karate-Do no passado – e a inclusão de novas técnicas não é um problema em si, mas, sim, a descaracterização do Karate-Do a partir dessa inclusão – e interpretações erradas e fantasiosas dos movimentos dos kata, onde estão guardadas essas técnicas. Notemos que essa inclusão de novas técnicas no repertório do Karate-Do, dando a ele características de uma coisa diferente, é o problema principal abordado neste texto. É preciso que os defensores dessa forma de inclusão – e não sou um opositor a isso – tenham o cuidado de não fazer do Karate (me refiro, com este termo, à arte marcial de forma geral, sem me referir a uma escola específica) ou do Karate-Do (já, com este termo, me refiro, ao Karate japonês, ou, mais especificamente, à escola Shotokan), algo diferente do que é ao adquirir características de outras artes.

3.    Desvalorização dos kata

Os kata, tendo perdido sua funcionalidade, passam a ser vistos como práticas inúteis marcialmente, que só servem para competir - na opinião deste que escreve, isso é potencializado pelas competições on-line de kata -, e que mais se assemelham a danças e, verdade seja dita, sem sua aplicação como um repositório de técnicas de luta, eles passam a ser apenas uma modalidade de competição, quase apartada do próprio Karate, tanto que há competidores que, competem só em kata e competidores que competem somente em kumite (claramente modalidades de competição diferentes e onde uma não depende em nada da outra). Sendo sua prática algo que não prepara para a luta por pontos, passa a ser considerada por muitos competidores como uma perda de tempo, como uma coisa chata, algo que só serve para a avaliação do exame de faixa ou para exibições. Por outro lado, há os praticantes de Karate que buscam se aprofundar no conhecimento que o treino de kata pode trazer, mas os próprios professores e professoras não têm o conhecimento necessário para ensinar isso e esses praticantes ficam frustrados, pois, por mais que tentem buscar isso, os professores e professoras não tem capacidade de ensinar kata, a não ser com o objetivo de ganhar competições;

4.    Comparações

A comparação da eficiência do Karate com outras artes marciais passou a incomodar, uma vez que ele passou a ser visto apenas como um esporte de luta sem maiores preocupações com a defesa pessoal e, por consequência, com praticantes fracos, muitas vezes facilmente dominados por lutadores experientes em outras modalidades;

5.    A busca do melhoramento do Karate por meio da prática de outras artes marciais

Aqui entramos no ponto principal. A busca do melhoramento da efetividade de técnicas de Karate-Do por meio da prática de outras artes marciais é uma forma inconsciente de afirmar que ele é inferior. Se tem uma frase que se diz muito no mundo das artes marciais e na qual eu acredito é que não existe uma arte marcial melhor que outra. Acredito nisso porque cada uma tem suas características próprias e cada uma foi criada – que eu saiba - não para superar outra que já existisse, mas com seus próprios motivos, suas próprias razões de ser, sem que entre elas estivesse uma necessidade de – como já dito – superar outra.

Sem dúvida, o karate, como tudo, deriva de alguma coisa, ou seja, de outras artes marciais, mas ele passou a ser algo com características próprias e mesmo tendo suas técnicas derivado das de outras artes, ele as trouxe para si e deu-lhes, internamente, características próprias, não modificando as artes de onde se alimentou. Assim, defendo que o karate seja enriquecido, mas não modificado em sua essência, pois ele já é algo autônomo, pode ser enriquecido, mas não precisa nem deve ser transformado em outra coisa, mas, reconheçamos, essa transformação já aconteceu.

Quando observamos a prática do Karate Kyokushin, por exemplo, temos a impressão de ser um Karate diferente, com mais contato. Não posso afirmar quais foram, mas, posso afirmar com alguma segurança, que essa escola de Karate recebeu influência de outras artes marciais e que isso o tornou tão diferente em alguns aspectos.

A história da elaboração das técnicas do Karate-Do é algo que precisa de muita pesquisa para ser afirmada, porém, podemos dizer que temos, no próprio Karate-Do, algo que contam muito de sua própria história e elaboração. Me refiro aos kata.

Se tem algo muito fácil de se concluir ao se observar alguém praticando kata, é que cada movimento ou conjunto de movimentos (kiodo) parece ser a representação de uma técnica de luta. Às vezes a pessoa parece estar atacando alguém, outras vezes parece estar se defendendo ou esquivando de um golpe, em outras parece estar arremessando ou desequilibrando o adversário. Considerando que esses kata são formas de se perpetuar, guardar, esconder, elaborar, etc, as técnicas de luta, de onde teriam vindo essas técnicas? Ora, de outras artes marciais e do próprio Karate, que já andava com as próprias pernas ao definir seus kata.

O karateka adquiriu a fama de ser – apesar das restritivas regras de competição – um lutador temido na luta em pé. Porém, quando o assunto é a luta agarrada, tanto em pé como deitado, ele já não é considerado tão eficiente. Isso é, sem dúvida, mais um efeito dos treinamentos voltados apenas para as competições que não tem lutas com agarramento em pé nem após uma queda. No entanto, os kata têm, sim, técnicas de arremesso, queda e desequilíbrio. Já não posso afirmar o mesmo sobre a luta no chão, como se diz.

Fonte: arquivo em PDF da obra Karatê-Do Kyohan[3]

Ao falar dessas técnicas, vamos lembrar que é conhecida a influência do Judô na entrada do Karate no Japão, devido ao apoio de Gigoro Kano a Gichin Funakoshi. Sabidamente eles trocaram influências nas suas respectivas artes marciais e aí o Karate, que já tinha seus kata elaborados antes disso, havendo neles as já mencionadas técnicas de arremesso, queda e desequilíbrio, recebeu mais conteúdo ao tomar esse contato com o grande sensei do Judô. Veja, não estamos dizendo que Gigoro Kano trouxe essas técnicas para o Karate-Do, mas que ele as influenciou, pois era um mestre nessa área.

Essas técnicas que, como já dito - pelo que podemos concluir pelo fato de já existirem nos kata do Karate antes do contato com Gigoro Kano -, devem ter vindo de outras fontes. Antes já havia o Jujutsu - que, apesar de ser uma arte japonesa, certamente foi observada em Okinawa devido à presença dos japoneses na ilha - e as artes da própria Okinawa e as vindas da China e nelas, certamente havia técnicas de luta agarrada e as de projeção. No nosso raciocínio, essas seriam as fontes desse tipo de técnicas que havia nos kata de Karate, mesmo antes da chegada ao Japão e da colaboração de Gigoro Kano.

Há, também, outras técnicas como as torções, os quebramentos, os pontos de pressão, os golpes em pontos vitais, as joelhadas, cotoveladas, cabeçadas, dedos nos olhos (que constituem a maioria das técnicas proibidas nas competições e consequentemente esquecidas), os socos e chutes, também com suas formas permitidas e as proibidas. Onde se poderia buscar seu melhoramento, se no Karate-Do muitas delas são mal conhecidas? Certamente que isso tudo pode ser buscado em qualquer arte marcial que as tenham como especialidade, mas, com cuidado para que o Karate-Do não seja descaracterizado por conta dessa importação de técnicas. Como já afirmei, o Karate nasce da junção de técnicas de várias outras artes, porém, ao traze-las para si, o Karate dá a elas características de Karate.

Poderíamos citar como exemplo desse cuidado que se deve ter, a tendência de se buscar melhoramento dos chutes, socos e até mesmo da noção de distância (no Karate chamada de maai), praticando Muay Thai.

Sem dúvida, as técnicas do Muay Thai são muito fortes – assim como são as do Karate-Do -, mas são muito diferentes. Alguns pontos fundamentais que posso citar são a postura com o centro de gravidade mais longe do chão, a forma de posicionar o pé de apoio que, na hora da execução dos chutes e joelhadas, fica com o calcanhar levantado do chão e isso é o contrário do Karate-Do! Da mesma forma ocorre com os socos e cotoveladas: na hora de aplicar o golpe o calcanhar sai do chão permitindo maior giro do corpo e deslocamento em direção ao adversário. São detalhes que são completamente diferentes no Karate-Do. Esses e outras formas podem até ocorrer no Karate, mas de maneira diferente, com a forma que o Karate lhes dá.

Assim, o karateka indo praticar Muay Thai, ou o Boxe, ou a Caporeira... paralelamente com o Karate, na intenção de melhorar esse último, vai provocar conflitos na técnica de um ou de outro.

As técnicas do Karate são muito peculiares. Elas têm um jeito, uma forma que lhe dão características de Karate. São, inclusive, difíceis de serem levadas a um nível técnico elevado, por conta da quantidade de detalhes a serem perseguidos e aperfeiçoados.

Existem muitos pontos do Karate-Do que podem ser citados para mostrar tanto sua peculiaridade, e assim, a diferença em relação à técnica de outras lutas, como seu desconhecimento por parte dos praticantes. Um deles é a técnica que envolve a movimentação do quadril. Uma execução bem feita de técnicas de Karate-Do passa necessariamente pelo domínio e aplicação dessa parte do corpo.

(NAKAYAMA, 2012) cita dois termos para mostrar a movimentação do quadril: Jun Kaiten e Giaku Kaiten. Esses termos servem para mostrar o sentido do movimento do quadril em relação ao sentido do movimento do golpe desferido. Ele mostra técnicas de braço, porém o princípio se aplica também a técnicas de pernas. Jun Kaiten significa “giro regular” e Giaku Kaiten significa “giro invertido”. Assim, quando o golpe desferido arremessa a energia para o lado direito do corpo e o quadril gira para o mesmo lado, o termo utilizado é Jun Kaiten. Quando, ao contrário, o golpe lança a energia para o lado direito, por exemplo, e o quadril gira para o lado oposto, o termo utilizado é Giaku Kaiten. Muito se ouve nas aulas de Karate-Do o(a) sensei dizer “gira o quadril!, gira o quadril!”, mas muitas vezes eles nem sabem girar o quadril e nem tem conhecimento desses princípios citados e, muito menos, dos termos que Nakayama utilizou. Talvez porque o autor, assim como as técnicas, estão cada vez mais desvalorizados.

Certamente outras artes marciais trabalham muito o quadril, mas a forma do Karate-Do é diferente. Portanto, praticar as técnicas de outra arte marcial – principalmente as que não são parte do Budo, uma vez que, sendo parte do Budo, podem conter semelhanças nas suas formas - pensando em melhorar as do Karate-Do, não é eficiente, é, na verdade, um fator de dificuldade a mais no aperfeiçoamento das técnicas dessa arte. Com certeza haverá conflito.

Tenho conhecimento de pessoas que praticam outras artes marciais paralelamente ao Karate-Do e visivelmente apresentam dificuldades em vários aspectos dessa última. Seguindo a lógica de que se pode melhorar o Karate-Do praticando outra arte marcial, essas pessoas deveriam ser, necessariamente, excelentes karateka. Há, também, os casos em que a pessoa consegue atingir um bom nível de Karate praticando outras artes marciais paralelamente, aí é preciso ver como se pode explicar, caso se tente fazer isso, como alguém pode ser bom em uma coisa fazendo outra.

Oss!

Obras Citadas

1.    Livros de G. Funakoshi. (2013). Acesso em 14 de novembro de 2021, disponível em Karatê o caminho da mão vazia: https://www.karatedo.asia/publications-gichin-funakoshi/

2.    NAKAYAMA, M. (2012). O melhor do Karatê (9ª ed., Vol. 2). São Paulo, São Paulo, Brasil: Pensamento-Cultrix LTDA.

3.    SILVA, H. P. (15 de dezembro de 2020). Karate-Do e Bonsai: duas ilusões de ótica. Acesso em 01 de 10 de 2021, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate-Do: https://estudosdekarate.blogspot.com/2020/12/karate-do-e-bonsai-duas-ilusoes-de-otica.html

4.    SILVA, H. P. (11 de Agosto de 2021). Essa coisa que chamam de Karate. Acesso em 06 de novembro de 2021, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/search?q=essa+coisa+que+chamam+karate

 



[1] Apesar desta colocação com tom de crítica, deve ser observado que no Karate-Do é exigida a capacidade de parar o ataque ao adversário poucos centímetros antes de ocorrer o impacto, uma vez que esse impacto provocaria sérios danos ao companheiro de treino e a falta dessa capacidade é considerada um ponto negativo para o praticante. Essa técnica é denominada sun dome, conforme (NAKAYAMA, 2012)

[2] Em “Essa coisa que chamam Karate” (SILVA, Essa coisa que chamam de Karate, 2021), é abordada essa questão.

[3] (Livros de G. Funakoshi, 2013)


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