KARATE-DO, UMA ARTE MARCIAL QUE SE PODE PRATICAR SOZINHO. SERÁ?

KARATE-DO, UMA ARTE MARCIAL QUE SE PODE PRATICAR SOZINHO. SERÁ?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 05/09/2021

 

Sem dúvida o Karate-Do é uma arte marcial com características peculiares. Trás consigo, além das técnicas, toda uma cultura agregada. As formas de praticá-lo muitas vezes atraem mais do que a própria técnica, uma vez que trabalham, além disso, o lado da formação moral do praticante. Claro, outras artes marciais também tem esse objetivo educacional, mas o Karate-Do adquiriu de maneira tão mais forte esse traço que podemos até considera-lo um estereótipo, uma marca.

Nesse quadro todo, o sensei adquire muita responsabilidade e, muitas vezes, ela parece ultrapassar os limites da prática da arte marcial, chegando a influenciar outros aspectos da vida do aluno e dele próprio. Porém, essa responsabilidade que ele parece ter, geralmente está mais na imaginação dos pais, mães, alunos e muitas vezes do próprio sensei, do que na realidade e ele se sente incomodado com tal atribuição, assim como relatam muitos professores de várias disciplinas, ou seja, todas essas pessoas envolvidas acham que cabe a eles, os professores, dar a disciplina que os alunos não recebem em casa.

Porém, no final das contas, o que cabe ao sensei é ensinar aos alunos a lutar e a saberem se comportar segundo as regras de etiqueta do dojo e a levarem tudo isso para fora do ambiente das aulas, ou seja, para a vida privada. Daí vem as afirmações de que o Karate-Do é uma arte marcial para a vida toda. Assim, os sensei nos ensinam a praticar Karate dentro e fora dos dojo. E nós praticamos.

A prática dos ensinamentos morais do Karate-Do no âmbito pessoal é uma consequência – assim entendo – do que os japoneses denominam Budo. O Karate-Do foi incluído nas artes do Budo com a finalidade de adaptá-lo às exigências educacionais do Japão na época em que foi trazido de Okinawa por Gichin Funakoshi sensei e outros pioneiros. Assim, como já afirmei acima, em outras palavras, considero o Karate-Do sob dois aspectos, o da técnica de luta e o do Budo, e procuro não utilizar a expressão “Karate Budo”, pois vejo nela vários equívocos[1], e, sim, a expressão “Karate como Budo” encontrada na obra Ki e o caminho das artes marciais (TOKITSU, 2012).

A parte do Karate-Do que visa ao aperfeiçoamento moral é algo que nos cabe exercitar, como já dito, dentro e fora do ambiente de treinamento e, apesar de ser posta em prática no contato com as outras pessoas, é algo feito solitariamente, ou seja, temos que por em prática por iniciativa própria, fazendo partir de nós mesmos. Nesses momentos, vem à tona, mesmo que inconscientemente, o Dojo Kun, o lema do dojo.

Nessa busca pelo aperfeiçoamento moral, várias e várias oportunidades nos surgem durante os dias que se seguem. Praticamente em tudo podemos por um pouco de Karate-Do. Assim, podemos dizer que não nos faltam momentos oportunos para esse exercício e, mesmo que não os busquemos, eles nos visitam, nos batem a porta. Não foi a toa que Funakoshi sensei escreveu no seu Nijun Kun, os seguintes axiomas:

道場のみの空手と思ふな

Dojo nomino karate to omou na

O Karate não se limita apenas à academiae

男子門を出づれば百万の敵あり

Danshi mon o izureba hyakuman no teki Ari

Para cada homem que sai do seu portão, existem milhões de adversários”.[2]

Sendo assim, não nos resta dúvida de que essa faceta do Karate-Do não nos apresenta dificuldades para que a ponhamos em prática sem a presença do sensei.

Porém, temos aquela outra faceta, o lado marcial do Karate-Do. Será possível praticar esse lado de forma solitária, também? E, se sim, será que isso é eficiente, uma vez que as técnicas de luta precisam ser praticadas contra alguém? Surge daí outra pergunta: quais os objetivos de se praticar solitariamente as técnicas do Karate-Do? Há aí algo mais que a técnica?


Fonte: autor do texto.


Não poderia afirmar que não tem como praticar as técnicas de Karate-Do solitariamente. Isso é tanto possível como necessário. O que o sensei nos ensina no dojo deve ser praticado, sim, como um dever de casa. Mesmo antes de sair do local de treinamento, depois da sessão de treino, no momento do mokuso, já devemos fazer, ali mesmo, uma rápida reflexão sobre o que se passou naquela hora e meia de treino, tentando fixar na mente alguns detalhes que possamos nos lembrar. Nesse momento, nos lembramos das falhas que cometemos, dos progressos e das novidades aprendidas.

Em casa ou em outro lugar em que vamos treinar sozinhos, fazemos também o mokuso, então, estabelecemos uma ligação com o treinamento recebido na aula. Devemos nos lembrar do que praticamos (uma sequência de kihon, um novo kata, uma correção que recebemos, etc.) e tentar aperfeiçoar os movimentos, superar alguma dificuldade ou memorizar melhor o que foi passado durante o treino no dojo. Às vezes questionamos a eficiência dessa prática solitária, pois não temos alguém nos observando e corrigindo e, ainda, porque não estamos aplicando as técnicas contra alguém.

Porém, é preciso compreendermos que, sendo o Karate-Do uma arte marcial que exige grande perfeição técnica e memorização dos movimentos, a repetição é necessária para os dois objetivos e que não há tempo para tanto nas sessões no dojo. Assim, treinar solitariamente, se observando e percebendo dificuldades é, sim, eficiente para esses pontos do treinamento.

Um aspecto importante nessa prática solitária do Karate-Do é que o karateka pode – para um possível aborrecimento de alguns sensei - por em prática sua forma particular de treinar. Essa arte marcial tem seus objetivos, suas técnicas, sua etiqueta, sua mecânica, enfim, tem tudo o que o torna algo chamado Karate-Do e para isso tem seus métodos. O sensei tem a missão de passar a diante essas particularidades todas. Na qualidade de alunos, temos a obrigação de, nas aulas, aprender sem contestar o sensei, pois, conforme (Lowry, 2011), o dojo não é uma democracia. Ali vamos para aprender o que o sensei está ensinando e se não aceitamos, devemos nos retirar e não contestá-lo. Porém, no treino solitário, nossa mente, mesmo que se guiando pelos ensinamentos obtidos no dojo, é mais livre, e podemos, como nossos sensei certamente já fizeram um dia e ainda fazem – para um possível aborrecimento dos seus sensei -, praticar nosso próprio Karate-Do.

Aí se abre um caminho mais amplo para nosso olhar: formas de se movimentar, de interpretar as técnicas guardadas nos kata e no kihon; leitura de livros que, em muitos casos, os sensei não tiveram acesso ou interesse em ler; observação do que está sendo disponibilizado na internet; comparação do que estamos aprendendo com nosso professor com o que dizem outros professores, enfim, o treino solitário é muito proveitoso para o karateka.

Nesses momentos, pomos em prática um lado muito importante, o exercício mental recomendado por Funakoshi sensei quando no já citado Niju Kun ele diz:

空手は湯の如し絶えず熱度を与えざれば元の水に還る

Karate Wa Yu No Gotoku Taezu Netsu O Atae Zareba Motono Mizuni Kaeru

O Karate é como água quente. Se não receber calor constantemente torna-se água fria”.

Praticar Karate solitariamente, às vezes, não é uma coisa fácil, pois temos que sair de um estado mental de preguiça e conforto para um em que isso seja superado em nome de uma prática ascética e podemos dizer até mesmo austera. Porém, essa forma de prática trás grandes benefícios como o desenvolvimento de um espírito mais forte; o alívio das tensões causadas pela rotina; os benefícios do exercício físico conhecidos por todos, etc. Isso é parte do Budo.

Porém, há que se tocar em outro aspecto da prática solitária que, acredito, é fonte de muito questionamento: treinar sozinho trás eficiência na aplicação da técnica, uma vez que, sendo técnicas de luta, é necessária a presença de um ou mais companheiros?

Novamente, temos que lembrar que o Karate-Do é uma arte marcial que tem muitas particularidades. Uma delas é a sua forma, o seu jeito de se movimentar, de fazer as técnicas acontecerem. São técnicas que exigem que o corpo se acostume a se movimentar de forma diferente. Como já dito, nesse contexto, a repetição e a auto observação constantes são imprescindíveis. Apenas para exemplificar um aspecto dessa técnica a ser atingido e que exige muita prática, cito a necessidade do centro de gravidade ser baixo. Sem um centro de gravidade baixo, as técnicas de Karate se tornam frágeis. Essa busca vai influir diretamente na eficiência em luta, ou seja, por meio do treino solitário, o karateka atinge certos níveis que são necessários para seu desempenho em luta.

Outra coisa que deve ser buscada por meio do treino solitário para o melhoramento em luta – além do condicionamento físico, claro – é a prática de kata. Já ouvi a afirmação de que para ser bom em luta é necessário praticar kata. Na minha opinião essa afirmação tem que ser melhor formulada. Aí eu pergunto: para que tipo de luta o kata é eficiente? Para que tipo de Karate o kata é eficiente?

Pergunto isso porque nunca alguém irá me convencer de que treinar kata é bom para a luta de karate esportivo. Não vou aprofundar muito essa opinião porque assim entraria em outro assunto, mas posso dizer que treinar kata vai servir para o Karate que busca ensinar técnicas de defesa pessoal e que para a luta esportiva será inútil. Quantas vezes já ouvi a mesma pessoa dizer que treinar kata é bom para lutar e depois dizer que tenho que soltar mais o corpo porque estou muito travado na luta devido à prática de kata?

Quando afirmei acima que para o melhoramento da luta deve ser buscada a prática de kata, me referi à luta de defesa pessoal, que é o verdadeiro objetivo do Karate e não à luta esportiva. Quando treinamos solitária e exaustivamente os vários kata, estamos praticando movimentos que devem nos dar a base para o aprendizado de dezenas e dezenas de técnicas de defesa pessoal que, infelizmente, são completamente desconhecidas pela maioria dos karateka. Aí está a eficiência do treino de kata para as lutas. Acredito que a prática de kata nos dá poucos benefícios para a luta esportiva e de “trocação” de golpes como o condicionamento físico e o equilíbrio do centro de gravidade. Nunca numa luta esportiva seria permitida a aplicação da maioria das técnicas que estão nos kata.

Portanto, reconheçamos, a prática solitária de Karate-Do é algo que deve sempre ser buscado. É a nossa forma de adicionar calor à água quente para que ela não esfrie. É uma forma de estudar e aperfeiçoar, de forma prática, uma arte.

É necessário reconhecer, também, que o treino solitário tem seus objetivos e principalmente seus limites. Basicamente, no aspecto físico, ele se destina à auto observação, à tentativa de correção de detalhes, à superação individual de limites, à memorização dos movimentos. No aspecto mental, essa forma de treinar pode nos beneficiar no sentido de que estamos buscando algo diferente do que estamos acostumados a fazer e também no sentido de que estamos tentando aperfeiçoar pelo nosso próprio esforço aquilo que nos é passado nas aulas. Como gosto muito de praticar sozinho, posso dizer que o karate só não esfriou em mim por causa disso. Em tudo que fazemos e aprendemos na vida, precisamos desenvolver a nossa própria forma de realizar. É como se tudo que passa por nós, inclusive o Karate, se transformasse ganhando nossas contribuições, mas mantendo sua essência. Da mesma forma, tudo isso que passa por nós, nos transforma, porém, permite que seja mantida a nossa essência.

Oss!


Fontes

1. DF, J. (22 de outubro de 2020). JKA DF. Acesso em 06 de 09 de 2021, disponível em http://jkadf.com.br/niju-kun/

2. Lowry, D. (2011). O Dojo e seus significados. Um guia para os rituais e etiqueta das artes marciais japonesas (1ª ed.). (J. S. Freire, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.

3. Silva, H. P. (07 de março de 2021). Meus aprendizados sobre o Karate. Acesso em 06 de setembro de 2021, disponível em https://estudosdekarate.blogspot.com/search?q=karate+budo

4. TOKITSU, K. (2012). Ki e o Caminho das Artes Marciais. (L. C. Cintra, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.

 



[1] Disponível em: <https://estudosdekarate.blogspot.com/search?q=karate+budo>. Acesso em: 05/09/2021.

[2] Disponível em: http://jkadf.com.br/niju-kun/. Acesso em: 05/09/2021.


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