Quem pratica o Dojo Kun?

 QUEM PRATICA O DOJO KUN?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 28/07/2021

 

Praticar o Dojo Kun[1]. Parece que essa é uma das coisas – ou seja, há outras coisas - de que os karateka são acusados - inclusive por si próprios - de não praticarem e parece que, por isso, há um desvirtuamento e uma inutilização desse conjunto de princípios morais.

Mas por que será que tanto se diz que eles não são praticados, principalmente pelos que os pregam e repetem quase todos os dias nos treinos de Karate-Do e os tem até pendurados na parede principal do seu Dojo, aquela chamada de kamisa? Não são necessários arrodeios, é simples: são princípios morais e lidar com o domínio da moralidade não é fácil porque temos que frear nossos impulsos para isso. Se não tivéssemos dentro de nós uma natureza impulsiva e agressiva não haveria necessidade de Dojo Kun ou qualquer norma moral. Mas, então, por que repito e ensino esses princípios nas aulas de Karate-Do se eu mesmo não os cumpro ou não consigo cumprir? Outra resposta não muito complicada: eu tento fazer com que os outros se esforcem para conseguir o que não consigo e eu fico parecendo um mestre das artes marciais.

As normas que procuram nos dar um norte para o nosso comportamento não são, como sabemos, exclusividade do Karate-Do. Elas fazem parte também - citando aqui apenas a área mais conhecida em que aparecem - das religiões. Inclusive, o Dojo Kun tem muita influência da religiosidade oriental. Dojo - palavra que pode ser traduzida como "lugar do caminho" ou "de prática do caminho" - segundo sei, é onde os monges sempre praticaram e praticam suas religiões, inclusive, esse local de prática pode ser ao ar livre.

Retomando a questão da prática do Dojo Kun, já tive oportunidade de assistir a uma aula em que o sensei afirmou que, para ele, pronunciar o Dojo Kun no início ou no final das aulas era algo desnecessário ou inútil, uma vez que muitos professores repetem aquelas palavras e não as praticam e, pelo contrário, fazem coisas dentro e fora do local de prática do Karate, que são o oposto do que ensina o lema do Dojo, inclusive, muitos desses são japoneses.

Surpreso? Não duvido, uma vez que onde há seres humanos há pessoas que podem fazer escolhas deploráveis e os japoneses, apesar de termos no senso comum a ideia de que são todos pessoas que fazem parte de um povo em que os bons costumes e a disciplina já vem do berço, não estão livres dessa característica. Porém, é importante lembrar que a prática de tais princípios não cabe aos outros, mas, a mim.

Na minha opinião, como o Karate-Do é uma das artes marciais incluídas no conceito de Budo e, sendo assim, tem como um dos objetivos a transformação e o melhoramento moral do praticante, o lema do Dojo é muito importante nessa busca. Não tenho certeza se as outras artes do Budo possuem um lema como o Karate-Do possui, mas, já que o possui, deve tanto preservá-lo como praticá-lo.

Assim, afirmar que os princípios não mais tem validade ou que apenas pronunciá-los é inútil – o que não deixa de ser verdade - é, em vez de procurar meios de reergue-los pelo próprio exemplo, ajudar a afundá-los cada vez mais. Pior ainda é criar um lema próprio – o que não é proibido, mas não me parece demonstração de humildade, pois isso é equivalente a se colocar em posição de superioridade em relação ao que havia antes – o que atesta a opinião de que, para esse criador de um novo lema, o antigo e tradicional princípio moral já era.

Certamente que a humanidade evolui, inclusive moralmente – e considero que só evolui moralmente porque existem códigos diversos de conduta para impor essa evolução -, e que certas normas de conduta se tornam ultrapassadas para determinada sociedade, porém, o que está contido no Dojo Kun não me parece já poder ser substituído por outra coisa, uma vez que seus adeptos estão longe de conseguir pô-los em prática espontaneamente sem que eles existam e precisem ser lembrados. Prova disso é o que estamos abordando aqui, ou seja, os princípios existem, mas não são praticados porque não se consegue fazê-lo.

Se os princípios existem, eles tem um motivo de ser. Foram criados porque seu criador viu que os praticantes precisavam de algo que os guiasse na melhoria moral. Ora, se existem regras morais e essas não são devidamente praticadas pelos seus pregadores, seria esse um motivo para que se extinguissem ou modificassem tais princípios? Fazendo uma comparação, por acaso os princípios das várias religiões que se possam imaginar são praticados pelos seus seguidores? Claro que não, nem por isso as religiões decidem abandoná-los, até porque se o fizessem estariam abandonando a essência dessas religiões e muito pouco restaria do que antes atraia os seguidores, apenas coisas vazias de significado, sem uma orientação tanto espiritual como moral, já que uma coisa está atrelada à outra. Pelo contrário, a maioria das religiões mantém vivos seus princípios há séculos ou milênios e as religiões mais recentes também têm os seus, já que a humanidade não conseguiu superá-los, ou seja, eles ainda tem muito a ensinar. Conclui-se que a humanidade tem necessidade de tais normas. É como alguém que precisa de luz para enxergar e se não a tem, uma hora vai tropeçar.

Ainda nesse raciocínio, acredito que o mesmo aconteceria – e já acontece – com o Karate-Do, uma vez que a ideia de caminho (Do) objetiva que a arte marcial seja um meio para o desenvolvimento das capacidades mentais, físicas, morais e espirituais do praticante e isso é orientado pelo Dojo Kun, ou seja, sem ele o Karate-Do torna-se apenas técnicas de luta sem a necessidade do desenvolvimento das capacidades já citadas acima.

Como deixamos implícito antes, o meio de recuperar o valor desses princípios não é querendo que os outros o pratiquem para, então, eu passar a acreditar que eles tem algo de bom, mas, por meio do meu exemplo, demonstrar que eles não são inúteis e que são um diferencial do Karate-Do. É com o meu próprio bom exemplo que vou mostrar o valor do Dojo Kun e não com o mau exemplo dos outros afirmar que ele não serve mais. Também não adianta substituí-lo por outro, pois também não será seguido, já que se trata da mesma coisa, ou seja, princípios morais, demandando, portanto, os mesmos esforços.

 

Quando os sensei nos dizem que no passado eram violentos até mesmo com os alunos e hoje são mais brandos, acredito que de alguma forma, estão mostrando que estão aprendendo a conter o espírito de agressão, mesmo que não percebam ou não admitam que o Dojo Kun esteve lhes influenciando. Claro que isso ocorre também com pessoas que não conhecem algo como um Dojo Kun em suas artes marciais ou mesmo no Karate, portanto, fica a pergunta: será que precisamos de um Dojo Kun?

Para a compreensão da importância do Dojo Kun, é importante perceber que esse lema nada mais é do que normas de conduta para uma micro sociedade dentro da grande sociedade em que está inserida e que procura se adaptar a seu tempo. Mesmo quem não conhece o Dojo Kun, mas, estando inserido em sua época de vigência, ou seja, o lema é uma característica desse tempo, está sendo compelido pelos fatos sociais a agir de acordo com o que essa época lhe impõe sob pena de ser punido. Essa punição não precisa ser necessariamente - mas pode ser – em forma de sanções da lei, como a privação da liberdade, por exemplo, mas pode ser em forma de julgamento e repressão por parte da sociedade - hoje temos a Internet e seu temido cancelamento como uma dessas formas de coerção social.

Essa coerção, conforme ensina Émile Durkheim[2], é uma das características do fato social. Assim, com o tempo, as pessoas passam a serem "naturalmente" menos agressivas por conta do melhoramento geral das formas de relações sociais, mas creio que o praticante de Karate-Do - ou, de forma mais abrangente, das artes do Budo - tem um motivo a mais para buscar ser mais controlado, tanto no Dojo como lá fora, e esse motivo é o conhecimento do Dojo Kun, que é uma ferramenta para se atingir os objetivos do Budo – que, infelizmente, dentro do próprio mundo do Karate, é confundido com pancadaria[3].

Assim, não é a toa que os pais e mães das crianças, encantados com essa atmosfera de disciplina que há nos Dojo sérios, sem falar no imaginário criado pelos filmes de artes marciais, geralmente buscam matricular suas crianças indisciplinadas em aulas de Karate ou Judo para que se tornem mais educadas. Isso só nos mostra que tanto o Dojo Kun quanto o próprio Budo – esse ilustre desconhecido - são, sim, algo muito importante e atual (não ultrapassado) no mundo do Karate-Do, e devem, mesmo com as dificuldades que são impostas à sua prática, serem praticados.

A questão da superação da agressividade por parte dos sensei, já abordada antes, nos lembra, claro, um dos axiomas do Dojo Kun: "Conter o espírito de agressão". Mas essa agressividade pode aflorar de vez em quando. Talvez, nesses momentos, eles se lembrem de outro princípio que diz “Fidelidade para com o verdadeiro caminho da razão” e percebam que estão se desviando do Do.

A agressividade é uma das reações mais difíceis de se controlar no ser humano. No momento em que ela surge, geralmente estamos sob efeito de uma emoção que nos faz agir de forma impulsiva e meio descontrolada. Por isso é difícil o controle, uma vez que temos que lutar contra uma reação em parte involuntária ou instintiva. Porém, isso é em parte e não totalmente involuntário. Sempre tomamos a decisão de fazer ou não a coisa.

Dentro do Dojo, as situações a serem controladas são mais físicas que emocionais. Conter o espírito de agressão fica mais restrito ao controle dos golpes que lançamos em direção ao colega de treino. (NAKAYAMA, 1977) nos fala do princípio denominado Sun-dome:

A essência das técnicas do Karatê-do é o kime. O propósito do kime é um ataque explosivo ao alvo usando a técnica apropriada e o máximo de força no menor tempo possível. (Antigamente, havia a expressão ikken hissatsu, que significa “matar com um golpe”, mas concluir disso que matar seja o objetivo dessa técnica é tão perigoso quanto incorreto. É preciso lembrar que o karateka de antigamente podia praticar o kime diariamente e com uma seriedade mortal usando o makiwara).

O kime pode ser realizado por golpes, socos ou chutes, mas também pelo bloqueio. Uma técnica sem kime jamais pode ser considerada um verdadeiro karatê, por maior que seja a semelhança. A disputa não é nenhuma exceção, embora seja contrário às regras estabelecer contato por causa do perigo envolvido.

Sun-dome significa interromper a técnica imediatamente antes de se estabelecer contato com o alvo (um sun equivale a cerca de três centímetros). Mas excluir o kime de uma técnica não é o verdadeiro karatê, de modo que o problema é como reconciliar a contradição entre kime e sun-dome. A resposta é a seguinte: de termine o alvo levemente adiante do ponto vital do adversário. Ele então pode ser atingido de uma maneira controlada com o máximo de força, sem que haja contato.

Isso requer tanto controle técnico como o respeito às regras do que estamos fazendo, ou seja, num treino não estamos autorizados a soltar a mão no rosto do companheiro de luta. Fazer isso é sinal de falta de perícia e também de deslealdade.

Já lá fora, as situações são mais no âmbito do controle emocional e aí é que aparece toda a filosofia expressa no lema do Dojo, uma vez que a finalidade dele é menos criar lutadores que promover o melhoramento da pessoa como um cidadão. Não vamos confundir a finalidade do lema com a da arte marcial, ela, sim, tem a função e o objetivo de formar lutadores.

Notemos que, por esse raciocínio, o Dojo Kun se aplica mais fora do que dentro do ambiente de prática do Karate-Do. É oportuno lembrar, então, o Niju Kun, conjunto de 20 (vinte) princípios elaborados por Gichin Funakoshi, quando ele diz: “Danshi mon o izureba hyakuman no teki Ari. Para cada homem que sai do seu portão, existem milhões de adversários”[4].

A seguir, o texto denominado “O presente de insultos”, encontrado em (COELHO, 2011), pode nos dar uma ideia do tipo de conduta esperada para um estudante das artes do Budo e notemos que essa filosofia busca, contrariamente ao que se tem na mente de muitos karateka, a superação da violência, ou seja, superação da pancadaria:

Perto de Tóquio vivia um grande samurai, já idoso, que agora se dedicava a ensinar o zen budismo aos jovens. Apesar de sua idade, corria a lenda que ainda era capaz de derrotar qualquer adversário.

Certa tarde, um guerreiro – conhecido por sua total falta de escrúpulos – apareceu por ali. Era famoso por utilizar a técnica da provocação: esperava que seu adversário fizesse o primeiro movimento e, dotado de uma inteligência privilegiada para reparar os erros cometidos, contra-atacava com velocidade fulminante.

O jovem e impaciente guerreiro jamais havia perdido uma luta. Conhecendo a reputação do samurai, estava ali para derrotá-lo, e aumentar sua fama.

Todos os estudantes se manifestaram contra a ideia, mas o velho aceitou o desafio.

Foram todos para a praça da cidade, e o jovem começou a insultar o velho mestre. Chutou algumas pedras em sua direção, cuspiu em seu rosto, gritou todos os insultos conhecidos – ofendendo inclusive seus ancestrais.

Durante horas fez tudo para provocá-lo, mas o velho permaneceu impassível.

No final da tarde, sentindo-se já exausto e humilhado, o impetuoso guerreiro retirou-se.

Desapontados pelo fato de que o mestre aceitara tantos insultos e provocações, os alunos perguntaram:

“Como o senhor pode suportar tanta indignidade? Por que não usou sua espada, mesmo sabendo que podia perder a luta, ao invés de mostrar-se covarde diante de todos nós?”

“Se alguém chega até você com um presente, e você não o aceita, a quem pertence o presente?”, perguntou o samurai.

“A quem tentou entregá-lo”, respondeu um dos discípulos.

“O mesmo vale para a inveja, a raiva, e os insultos”, disse o mestre. “Quando não são aceitos, continuam pertencendo a quem os carregava consigo”.

As situações do cotidiano que nos testam a paciência podem nos levar a atitudes, como já dito, deploráveis. De tanto contermos os golpes que poderiam machucar seriamente nosso companheiro de treinos, podemos adquirir também a capacidade de não nos abalarmos diante do impulso de revidar golpes que nos atingem a moral. Claro que há situações em que o revide, por uma questão de justiça ou de proteção de inocentes ou de indefesos ou de si é, também, um dever do karateka, porém, com o devido autocontrole para que o excesso seja evitado, mas com a força que o Karate-Do nos dá.

Notemos que o Dojo Kun não perde o valor dos seus princípios por si só ou porque os outros não os praticam, mas porque nós não os praticamos.

Oss!

Fontes

1.       COELHO, P. (28 de 08 de 2011). Paulo Coelho. Mensagem do dia. Acesso em 23 de 07 de 2021, disponível em g1.globo.com: http://g1.globo.com/platb/paulocoelho/2011/08/28/o-presente-de-insultos-2/

2.       Japan Karate Association. (s.d.). Acesso em 28 de julho de 2021, disponível em Philosophy: https://www.jka.or.jp/en/about-jka/philosophy/

3.       JKA Brasil. Japan Karate Association. (s.d.). Acesso em 28 de julho de 2021, disponível em Filosofia: https://www.jkabrasil.com.br/karate-jka/filosofia/

4.       NAKAYAMA, M. (1977). O melhor do Karatê (Vol. 1). (C. Fischer, Trad.) São Paulo, São Paulo, Brasil: Cultrix.

5.       PORFíRIO, F. (s.d.). Brasil Escola. Acesso em 28 de julho de 2021, disponível em Émile Durkheim: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/emile-durkheim.htm

6.       Silva, H. P. (07 de março de 2021). Karate budo. O que é isso? Acesso em 28 de julho de 2021, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/03/karate-budo-o-que-e-isso.html



[1] Convém informar sobre as palavras de origem japonesa ou okinawana aqui utilizadas que:

1.     A expressão ou palavra “Karate-Do” será utilizada para referir-se especificamente à forma japonesa de Karate, enquanto que a expressão ou palavra “Karate”, para que seja feita uma distinção, será utilizada para se referir ao Karate não japonês.

2. Por não ter certeza sobre se o uso das palavras de origem japonesa ou okinawana já está ou não “aportuguesado”, escreverei as mesmas utilizando o itálico, menos nos nomes de pessoas e de lugares pois, sendo nomes próprios, creio não seja necessário.

 

[2] Cientista estudioso dos assuntos relativos às sociedades humanas. Informações biográficas disponíveis em: <https://brasilescola.uol.com.br/biografia/emile-durkheim.htm>. Acessado em 23/07/2021

[3] Caso se interesse, temos um texto sobre esse assunto em: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/03/karate-budo-o-que-e-isso.html

[4]Disponível em: https://www.jkabrasil.com.br/karate-jka/filosofia/ acessado em 28/07/2021


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