As posições do Karate-Do: bases ou posturas? As dificuldades de entender e a preguiça.

 AS POSIÇÕES DO KARATE-DO: BASES OU POSTURAS? AS DIFICULDADES DE ENTENDER E A PREGUIÇA.

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 09/10/2021

 

Certamente o Karate-Do é a coisa que conheci até aqui que mais sofre com erros cometidos pelas pessoas que o praticam diariamente e que, repetindo-os diariamente, seja por preguiça de estudar, por falta de fontes para esse estudo, por terem fontes de estudo erradas - geralmente as tais apostilas - ou por pressão de quem ensina e não aceita que a coisa seja vista de outra forma – geralmente mais correta – que ele vai se tornando cada vez mais equivocado, para não dizer errado, mesmo.

Sabemos das dificuldades de se compreender algo que se entranhou em nossa cultura, vindo de outra cultura completamente diferente, como é o caso da japonesa. Essas dificuldades de compreensão vêm basicamente da grande diferença entre os idiomas que são incompreensíveis um para o outro. Para os japoneses é impossível entender o que um brasileiro fala e vice-versa. Outra dificuldade é a própria diferença entre as culturas, uma vez que costumes diferentes muitas vezes são também antagônicos – por exemplo, muitas pessoas se recusam a fazer o cumprimento inicial e o cumprimento final e mesmo a fazer as reverências aos colegas e ao sensei em sinal de respeito, alegando que isso tudo é contrário às suas religiões.

A prática do Karate-Do abarca não somente aspectos técnicos, mas, também, culturais e tradicionais. Durante os treinos, em grande parte dos Dojo, vemos rituais no início e no fim deles, vemos também durante esses treinos formas de se comportar com muitas reverências e palavras do idioma japonês, o Nihongo. Tudo isso, na maioria das vezes é feito de forma mecânica ou mesmo inventada para dar um ar de “japonesidade” ao local. Dessa forma, muitas distorções vão se solidificando. Essa dupla face (técnica e cultural/tradicional) exige que os professores tenham conhecimento nas duas áreas, caso queiram ser reconhecidos como minimamente preparados. Lembro agora que já fui ensinado no sentido de que, após a faixa preta, o critério de conhecimento teórico passa a pesar cada vez mais em relação ao conhecimento técnico para obtenção das graduações.

Porém, não é incomum que vejamos, na maioria das vezes, professores com nível técnico bom ou muito bom, mas que tem um conhecimento da cultura e das tradições bem questionável, apesar dos objetos nas paredes, das palavras japonesas utilizadas e dos hábitos cultivados no Dojo, coisas que são feitas na base da repetição e não do aprendizado.

Tudo isso é compreensível, dadas as dificuldades que já pontuamos acima. Porém, duas das dificuldades que colocamos foram a preguiça e a pressão exercida por quem ensina. O que fazer para superar isso? Sobre a segunda dificuldade, lembro que uma vez, em um seminário com um sensei muito respeitado, perguntei a opinião dele sobre uma prática que estava sendo ensinada a mim – e que parece ser muito comum em todos os lugares - e que eu sabia que não estava correta ou, pelo menos, não estava de acordo com a fonte segura que consultei. Ele, então, me disse que eu deveria respeitar meu professor, fazer como ele estava me passando e quando eu tivesse autonomia para praticar ou ensinar da forma como eu achava coerente com essa fonte que havia consultado, que então fizesse.

Sigo esse conselho sempre que surge um “conflito” como esse. Já sobre a outra dificuldade, a preguiça, a coisa é diferente. Como podemos aprender Karate-Do de forma autônoma – o que é necessário, principalmente quando atingimos graduações mais elevadas - e perceber que o sensei está equivocado se não temos disposição para irmos em busca do conhecimento ou ponderar sobre um conhecimento novo que nos chega? Um problema é que essa iniciativa pode ser considerada pelo sensei como uma forma de desrespeitá-lo, mas ele deve entender que essa atitude é absolutamente normal em todas as áreas em que o ser humano procure se desenvolver, ou seja, o professor dá ao aluno o caminho e o aluno segue, mas, nem sempre o caminho seguido pelo aluno será igual – ou nunca será igual – ao do professor e ele (o aluno) terá que fazer suas escolhas pessoais e adquirir conhecimentos que o professor não pôde ensiná-lo. O aluno, claro, também deve entender que não deve afrontar o sensei com sua forma particular de ver a arte marcial.

Voltando à questão da preguiça, a justificativa das dificuldades encontradas pelos primeiros karateka brasileiros em relação ao conhecimento um pouco melhor sobre a cultura e o significado das coisas e das palavras utilizadas no ambiente do Karate-Do não vale. Hoje em dia, diferentemente de décadas atrás, o acesso à informação é muito mais fácil. Os livros e outras formas de aprendizado estão mais acessíveis a todos. Porém, muitos ostentam bons livros em suas estantes e não os consultam, preferindo fazer uma pesquisa no You Tube ou no Google para obter respostas rápidas e, quase sempre, passageiras.

Há um detalhe que pode parecer insignificante para muitos, sendo considerado apenas uma mera questão de palavras, mas na opinião deste que escreve pode ser a expressão de um descuido com detalhes muito mais importantes que, apesar de estarem na nossa cara, não damos importância. Faço essa afirmação porque o detalhe a que vou me referir já deve ter passado pelos olhos de muitos professores e professoras de Karate, uma vez que muitos deles possuem os livros onde está essa informação, já leram, e, por um motivo ou outro, podendo um desses motivos ser, inclusive, considerar essas obras como sem importância, continuam usando uma expressão de forma diferente do que está lá. Não quero dizer com isso que as obras devem ser seguidas - cada um baseia seu conhecimento no que ache melhor - mas quero dizer que elas tem sua importância e que sendo o Karate-Do algo que se utiliza diariamente de tradições e costumes, desprezar obras literárias escritas por pessoas com conhecimento – me arrisco a dizer – quase inigualável, não é bom.

O detalhe a que quero me referir é o uso da palavra “base” para falar sobre as posições do nosso corpo durante a prática do Karate-Do. Como dito acima, parece ser apenas uma questão de palavras, mas pode expressar falta de atenção com detalhes maiores.

As posições que o karateka assume na prática do Karate-Do são muito peculiares e são um dos elementos que mais lhe caracterizam. Elas tem o objetivo de colocar o praticante em condições de executar as diversas técnicas dessa arte marcial. Um dos objetivos primordiais é a firmeza do karateka no solo, o que vai lhe proporcionar que extraia dali o impulso/arranque necessário para a geração da energia de – acredito – todos os golpes do Karate-Do. Afirmo que o uso da palavra “base” para se referir à posição do corpo em vez de “postura”, como ensinam (NAKAYAMA, 1977) e (KANAZAWA, 2010) é um equívoco e principalmente, que traz grande prejuízo para a compreensão da mecânica dessas posições, uma vez que os autores trazem explicações de princípios específicos para uma e para outra palavra.

Segundo (NAKAYAMA, 1977),

a postura como termo, rerefe-se sempre à parte inferior do corpo. Para que as técnicas sejam executadas com rapidez, com precisão, força e suavidade, a postura tem que ser firme e estável.

No mesmo capítulo (Fundamentos) da mesma obra, o autor faz uma descrição de todas essas posições, de seus aspectos e de exercícios, sempre utilizando a palavra “postura” para a elas se referir e assim o faremos daqui para frente.

No volume 2 da mesma obra, Masatoshi Nakayama dedica o capítulo 2, Posturas, à descrição dessas posições, entre as páginas 35 e 58, sempre falando em posturas e nunca em bases para descrever e detalhar essas posições.

Outra obra muito importante e que utiliza o termo postura da mesma forma é (KANAZAWA, 2010). No capítulo KARATÊ: OS FUNDAMENTOS, pág. 38, Posturas, Hirokazu Kanazawa faz a descrição de várias posições do Karate-Do sempre com a palavra postura. Mas, e a palavra “base”? por que ela é tão utilizada?

Realmente não tenho como afirmar a causa do uso dessa palavra no meio do Karate-Do quando há informações tão explícitas sobre o uso da palavra “postura”, porém, lanço uma hipótese.

Na obra já citada de Masatoshi Nakayama (NAKAYAMA, 1977), em suas páginas 40 e 41, há uma descrição da “Relação Entre a Área da Base e a Estabilidade da Postura”. Ali há a explicação de como a área da base, ou seja, o espaço ocupado pelos pés do karateka no solo, quanto maior for, maior será a estabilidade da postura, mostrando quais são as posturas que, tendo uma área de base maior, são mais estáveis e quais, tendo uma área de base menor, são menos estáveis. Podemos comparar isso com a base de um pedestal de microfone, por exemplo. Notem que aí está o “grande prejuízo para a compreensão da mecânica dessas posições”, porque Nakayama usa o conceito de base – área da base, melhor dizendo – para explicar a consequência da ocupação de uma área grande ou pequena pelos pés durante a execução das técnicas. Concluo que não é apenas uma mera questão de palavras, mas, sim, de conceitos: o autor teve uma intensão no uso delas.

Essa explicação hipotética para o uso da palavra base em detrimento da palavra postura, quando levamos em conta as obras citadas, que consideramos um farol para os karateka (SILVA, 2021) é, como já dito, para nós, um indício de desatenções várias em outros aspectos do Karate-Do. Porém, isso é no caso em que as pessoas tenham o livro, considerem-no importante, tenham lido e, mesmo assim, continuem fazendo e falando coisas incoerentes com o conhecimento que tem, ou seja, negligenciando esse conhecimento em favor de não sei o que, e esses casos são muitos, visto que muitas pessoas ostentam esses livros. Mas tudo isso é apenas sobre uma simples palavra em língua portuguesa. Imaginemos os equívocos e desleixos que há com o uso das dúzias de palavras em idioma japonês!

Fonte: foto do autor retirada de (NAKAYAMA, 1977)

Pois é, há muitos outros equívocos desse tipo. Por exemplo, você sabe exatamente ou, pelo menos, aproximadamente, o significado das palavras que se dizem durante os cumprimentos do início e do fim dos treinos? Não vou dizer que sei exatamente, mas vou dizer que sou uma dessas pessoas que sabem, pelo menos, aproximadamente, esse significado e por isso afirmo, também, que muitas vezes se fazem esses cumprimentos de forma bem errada.

Acho bem complicado descrever como devem ser esses cumprimentos, uma vez que há várias formas de se fazer: uns fazem em pé (ritsu rei), outros sentados (za rei), outros fazem um mokuso que não passa de cinco segundos, outros fazem por um minuto, outros por dois ou três. Já outros nem fazem esse momento de concentração. Já em alguns Dojo se diz o Dojo Kun tanto na língua japonesa como em Português, ou, em outros casos, não se diz, ou se diz apenas em Português.

Porém, apesar de todas as variações possíveis, algumas frases – me perdoem se a escrita não estiver correta - são presentes em quase todas as formas de cumprimento inicial e final: "Shomen ni, rei!",Sensei ni, rei!”, “otaga ni, rei!” e “senpai ni, rei!”. Esses comandos são para que se cumprimentem, respectivamente, em direção ao Shomen, ao sensei, a todos os presentes (otaga ni) e ao senpai. Porém, é muito comum que se vejam os cumprimentos sendo feitos para pessoas que nem presentes estão ou para as pessoas erradas, comprovando assim, que não se sabe o significado das palavras ou mesmo que se tenha uma noção geral do significado das frases, e que apenas se fazem repetições das coisas ou, ainda, que, diante da forma como se faz repetidamente ano após ano, sente-se uma pressão para que se deixem as coisas como estão.

Mas acredito que de todos os casos, o mais curioso e corriqueiro caso de uso errado das palavras em idioma japonês no âmbito do Karate-Do é o uso da palavra kimono para se referir ao uniforme do Karate-Do.

Com o mínimo de esforço vamos ficar sabendo facilmente que o uniforme do Karate-Do não é um kimono e sim um do gi ou karate gi, ou seja, um “uniforme utilizado na prática do caminho” ou “uniforme de Karate”, mas, nem professores, nem alunos, nem admiradores, nem a imprensa – mesmo a esportiva - nem vendedores desses uniformes, nem mestres do You Tube, mesmo sabendo o nome correto, não deixam de falar errado. Isso é muito curioso e também expressa, como nos outros casos acima, a falta de interesse em se fazer uma prática mais aprofundada, correta, buscando saber um pouco que seja sobre a cultura e as tradições que formam a bela arte do Karate-Do, preferindo-se sempre ficar nos achismos e na superficialidade, pois é mais fácil.

Caso você tenha tido o interesse em ler este texto até aqui, fica o conselho para que respeite o conhecimento do(a) sensei, pois ele(a), talvez não tenha tido a oportunidade de obter os conhecimentos que você pôde obter; para que, constatando que o(a) sensei está equivocado(a), não o(a) afronte; para que busque sempre se aprofundar no seu próprio conhecimento; para que, tendo a oportunidade, repasse seu conhecimento a alguém.

Oss!

 Fontes

1.    KANAZAWA, H. (2010). Faixa Preta. (G. Serpa, Trad.) São Paulo, São Paulo: Escala.

2.    NAKAYAMA, M. (1977). O melhor do karatê. Visão abrangente. Práticas. São Paulo, São Paulo: Pensamento-Cultrix.

3.    SILVA, H. P. (22 de 02 de 2021). A obra de Nakayama sensei (um clássico) está ultrapassada? Acesso em 09 de 10 de 2021, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/02/a-obra-de-nakayama-sensei-um-classico.html

4.    Silva, H. P. (07 de março de 2021). Meus aprendizados sobre o Karate. Acesso em 06 de setembro de 2021, disponível em https://estudosdekarate.blogspot.com/search?q=karate+budo


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