Com quem você treinou?

UMA PERGUNTA IMPORTANTE PARA O KARATE, MAS, TÃO IMPORTANTE?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 18/06/2021

 

"Lembre-se, o Karate-Do[1] deve começar e terminar com cortesia". Dentre os vinte axiomas de Gichin Funakoshi sensei, o Niju Kun[2], esse parece ser um dos mais conhecidos e praticados. Assim, sempre no início e no final dos treinamentos do Karate-Do Shotokan, realiza-se um ritual de cumprimento cuja forma varia bastante de um Dojo para outro, mas, de alguma forma, sempre existe. Isso ocorre, também, nos campeonatos mundo afora, ou seja, há um cumprimento antes, algumas vezes durante e, também, depois das lutas. Tudo é sempre muito cortês. Um dos motivos disso é que é necessário se manter o ambiente onde se pratica o Karate-Do com o máximo de respeito entre os praticantes, uma vez que ali se vai para aprender a lutar, se defender, e durante a prática podem ocorrer acidentes e até deslealdades entre eles, dando oportunidades para desentendimentos e rivalidades. 

Falando em rivalidades, esse é um sentimento sempre presente entre muitos praticantes de Karate, o que é normal, já que o confronto físico é algo tão fundamental nessa prática. Sem confronto físico não há Karate. Essa rivalidade ocorre também no nível mental e não só fisicamente, ou seja, os sentimentos egoísticos entre os praticantes são muitas vezes antagônicos e se chocam. A vaidade e a vontade de mostrar a si mesmo, ao sensei e aos companheiros de luta uma superioridade em relação, muitas vezes, a um companheiro específico de treino, chega a ser perigosa durante a prática e quanto mais graduados são os antagonistas, maior é esse nível de perigo em decorrência da maior capacidade de ferir o outro. Uma coisa é dois faixas amarelas serem rivais e estarem sempre em constante embate, outra é uma rivalidade entre faixas pretas arengueiros. Daí a importância de se manter o respeito durante a prática e que ela sempre se inicie e termine com cortesia. Durante um treino, passamos pelo nosso rival várias vezes e sempre a etiqueta do Dojo nos leva a cumprimentá-lo com sentimento de gratidão pela oportunidade de praticarmos a arte por meio do seu corpo.

No caso dos faixas pretas arengueiros a rivalidade pode e muitas vezes extrapola o ambiente do treino, gerando os famosos "rachas" no mundo do Karate. Quem nunca ouviu falar em um? Quantas e quantas entidades proliferaram em razão dessas arengas? Imaginem a qualidade delas...

Apesar de não ter informações muito seguras e de as que tenho até agora, em função da minha pouca experiência e conhecimento da história do Karate-Do do Estado serem inexatas, sei que aqui no RN houve um grande racha. Isso ocorreu nos anos 1980 e um dos principais motivos parece ter sido que o "respeito acima de tudo" foi esquecido em algumas oportunidades e daí nasceu um sentimento de indignação em relação a um grande karateka, o que provocou uma separação e um grande prejuízo ao nosso Karate-Do que, segundo algumas opiniões, se tivesse seguido mais unido, seria uma força nacional hoje em dia. Fatos e boatos à parte, isso mostra como é importante a questão do reigi[3] nos Dojo de Karate-Do.











Fonte: https://www.eosworldwide.com/blog/6312-eos-issues-solving-look-eye-daniel-san. Acesso em 20/06/2021[5]


Todo esse preâmbulo é para tocar num detalhe que acho muito curioso no Karate-Do. Trata-se de uma pergunta que sempre se houve quando se chega em um local na condição de novato, na tentativa de ser aceito para treinar. Tenho certeza de que você já foi perguntado, já perguntou ou teve vontade de perguntar ou ouviu alguém perguntar a alguém: com quem você treinava?

Essa pergunta não revela apenas uma curiosidade de quem pergunta. Ela revela também uma hostilidade que toma o lugar dessa cortesia que deve haver no início. Muitas vezes o axioma referido no início do texto não é lembrado nesse primeiro momento. A pergunta é como uma ponte que, ao mesmo tempo em que começa a ser construída, pode ruir imediatamente após a resposta. Essa resposta é como os pilares da ponte, se eles forem bem fortes a ponte continuará de pé, se forem considerados fracos por quem pergunta, ela cairá, muitas vezes, imediatamente, quando não aos poucos. A tal rivalidade antes abordada tem papel central nesse momento tenso. Se o ex-professor for um desafeto a pretensão do aluno pode até não ser desfeita logo na chegada, mas ele se tornará um alvo de desconfiança e essa desconfiança custará a ser desfeita, apesar de ele não ter nada a ver com essa história entre os arengueiros. Tenho conhecimento de uma história chata ocorrida com um amigo, quando ele não foi aceito por um sensei de Karate-Do a quem ele admirava e gostaria de ter como professor, após responder à tal pergunta feita a ele, revelando que seu professor havia sido um desafeto do pretendido novo sensei. A porta do novo sensei, nesse momento, parece ter sido fechada na sua cara quando ele disse que aluno de tal professor não poderia treinar ali. Ele não tinha nada com a rivalidade dos dois, mas foi o alvo do ressentimento. A pergunta foi a ponte que tinha como pilar fraco a resposta. Tudo desmoronou antes de terminada a construção. Parece que houve um pedido de desculpas anos depois, mas não deu certo. Certamente, ali não houve a tal cortesia que deve iniciar o Karate-Do.

Me questiono se essa é uma pergunta válida e se deve ser feita. Acredito que sim, dependendo do objetivo, e ele pode ser variado, por exemplo, a resposta pode dar ao sensei uma importante impressão inicial sobre esse novo aluno. Pela resposta vários aspectos da personalidade dele podem ser sondados, mas isso é subjetivo. Algo mais concreto pode surgir da resposta em si, ou seja, se o candidato foi aluno de um amigo ou de alguém que tem boas referências, tudo pode transcorrer com mais tranquilidade, porém, se o nome do ex-professor for de alguém com quem tenha havido algum desentendimento ou que não seja muito bem visto, o resultado pode ser o que ocorreu com o meu amigo.

Sim, acho que a pergunta é válida por vários aspectos, até porque na prática de artes marciais há muita gente mal intencionada e perguntas como essa feitas logo nos primeiros contatos podem ser importantes para uma prevenção, mas ela é um método tão eficiente assim? Um aluno novo não é como um trabalhador que busca emprego em uma empresa e precisa apresentar seu histórico de trabalhador para ser aceito ou não. Em verdade, ele é um estudante querendo aprender e querendo pagar para aprender. Durante as aulas o sensei deve procurar perceber tanto as qualidades técnicas como as morais desse novo aluno. Fechar a porta logo na entrada por conta de uma simples resposta que fala mais do ex-professor do que dele mesmo me parece um erro. Será que esse aluno não pode se revelar alguém dedicado ao seu Dojo, independentemente de com quem ele tenha estudado antes? Parece que essa pergunta se tornou uma forma de saber o que não está nos certificados e diplomas que o aluno possa trazer para apresentar ao novo sensei. Portanto, apesar de válida em alguns aspectos, ela não é tão eficiente.

A questão do certificado também é interessante. Há um método de certificação da transmissão do conhecimento nas artes marciais japonesas chamado menkyo kaiden[4], entre outros. Esse método é bem antigo sendo utilizado há séculos e apesar de não saber se ele foi ou é utilizado no Karate, parece ter inspirado a atual e mais usual forma de atestar o conhecimento dos alunos que são os certificados e os diplomas. O menkyo kaiden é também um certificado, um documento, e como tal, tem sua autenticidade e sua eficiência, mas também não é uma garantia infalível de que o detentor seja alguém que realmente domine ou tenha aquele conhecimento que está certificado. Documentos podem ser comprados, vendidos, trocados, falsificados, adulterados, dados por favores, por interesses diversos e os certificados do Karate-Do não estão livres disso tudo, como sabemos tão bem.

Portanto, nem tudo está nos documentos elaborados após um exame de faixa. Ao ser perguntado sobre com quem treinamos antes, surgem informações que os diplomas e certificados não trazem.

Há esse lado de quem pergunta, mas há também o lado de quem responde. Como devo responder à pergunta? Quando os anos vão passando percebemos que essa pergunta não é feita somente pelo sensei quando chegamos ao seu Dojo. Sempre que conversamos com alguém sobre nossos treinos de Karate-Do e também de outras artes marciais, ela sempre surge, portanto, vamos nos habituando a ela. Nos acostumamos tanto a responde-la como a perguntar. Aos poucos estou me policiando ao responder. Procuro ser sincero com os nomes dos antigos sensei e procuro exaltar as qualidades deles, apesar de na condição de ser humano, sempre me virem à cabeça as imperfeições que eles me apresentaram – pois são seres humanos - e de, às vezes, deixa-las escapar como se eu fosse alguém superior em alguma coisa, mas, como disse, estou me policiando para expor sempre o lado bom deles.

Enfim, responder ou fazer a tal pergunta virou um ponto em comum nas conversas dos praticantes de Karate e é, sim, importante, mas a resposta que ela trás pode causar uma primeira impressão não muito boa, porém, se tem um ditado que gosto de utilizar ao contrário é o que diz “a primeira impressão é a que fica”. Gosto de dizer “a primeira impressão é a que muda”.

Oss!

Fontes

1. Mokuroku 00, menkyo 免許. (s.d.). Acesso em 18 de junho de 2021, disponível em 蝴蝶 Kochōkai: http://www.kochokai.nl/?p=537&lang=en

2. NIJU KUN. (s.d.). Acesso em 20 de junho de 2021, disponível em ISKF-BRASIL. ASSICIAÇÃO INTERNACIONAL SHOTOKAN KARATE FEDERADOS: http://www.iskf.com.br/site/niju-kun/


[1] Convém informar sobre as palavras de origem japonesa ou okinawana aqui utilizadas que:

1. A expressão ou palavra “Karate-Do” será utilizada para referir-se especificamente à forma japonesa de Karate, enquanto que a expressão ou palavra “Karate”, para que seja feita uma distinção, será utilizada para se referir ao Karate, incluindo o não japonês.

2. Por não ter certeza sobre se o uso das palavras de origem japonesa ou okinawana já está ou não “aportuguesado”, escreverei as mesmas utilizando o itálico, menos nos nomes de pessoas e de lugares, pois, sendo nomes próprios, creio não seja necessário.

[2] http://www.iskf.com.br/site/niju-kun/. Acesso em 20/06/2021

[3] No Dojo Kun, um dos axiomas diz: Hitotsu, Reigi O Omonzuru Koto (respeito acima de tudo). Ou seja, a palavra reigi pode ser traduzida como respeito ou cortesia.

[4] Algumas informações sobre o menkyo kaiden em http://www.kochokai.nl/?p=537&lang=en. Acessado em 18/06/2021.

[5] O Sr. Miyage do filme Karate Kid ensina a seu aluno a cumprimentar desconfiadamente e isso se vê nos Dojo de Karate-Do, porém, sabemos que cumprimentar alguém olhando-a nos olhos em sinal de desconfiança é, também, sinal de desrespeito. Fazemos essa referência pois a influência dos filmes de artes marciais no imaginário dos praticantes é muito forte.


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