O que faz o Karate ser Karate?

O QUE FAZ O KARATE SER KARATE?

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 24/04/2022

Que elementos dão ao Karate a sua “cara”, a sua essência? O que o faz ser o que é? Para mim, parecia que a resposta a essa pergunta seria simples (kihon, kata e kumite), mas ao tentar escrever sobre isso, me vieram muitas questões. Segue o que consegui expressar de forma escrita.

Às vezes nos causa surpresa ver alguém ensinar no Karate movimentos e posturas com aplicações que não se prendem tanto às formas impostas pela prática engessada e repetitiva que sempre vemos. Se vemos alguém treinando coisas como a posição das mãos em guarda próximas à cabeça, socos em movimentos semi-circulares (mawashi zuki, por exemplo), cotoveladas, joelhadas e outras coisas que geralmente não vemos no Karate, estranhamos[1]. Muitas vezes vemos pessoas que chegam à faixa preta e não sabem bater com o punho, ou seja, dar um soco, apesar de já terem dado milhares de socos no ar. Pelo fato de nunca terem batido em nada e ficarem só socando o ar, quando acertam algo o punho entorta. Mesmo assim, se veem alguém treinando num saco de pancadas ou num aparador, dizem que isso é coisa de boxeador ou de praticante de Muay Thai. Tem gente que estranha até treino na makiwara.

Essa é uma forma preconceituosa de ver o Karate-Do – quando menos, é só por falta de um conhecimento melhor, mesmo - e é direcionada a uma parte dos karateka, geralmente, uma parte que é meio isolada do movimento que predomina no Karate, ou seja, o Karate esportivo, uma vez que as formas mais realistas de se interpretar os movimentos dessa arte marcial não se encaixam nessa modalidade. É necessário que se pratique um Karate-Do mais marcial, porém, também é preciso que não se confunda uma prática de um Karate-Do mais realista com outras formas de luta.[2] Karate tem que continuar sendo Karate.

Falo dessa forma porque há ao longo do tempo uma tendência em se desvirtuar o Karate-Do, tanto dentro do ambiente do próprio Karate, com uma prática muitas vezes ridícula, perpetuando cada vez mais um Karate inútil, como no ambiente de outras artes marciais com comentários deselegantes e desrespeitosos sobre ele, geralmente partindo de quem tem um conhecimento desprezível sobre a arte, conhecendo apenas ramificações que lhe provocam prejuízo.

Karate é muito “testado” nesses eventos grandiosos em que as artes marciais se enfrentam (o UFC e vários outros), porém, não é porque um lutador é karateka que ele estará necessariamente lutando Karate ali, e aí, deve-se ter muito cuidado para não se dizer que aquilo que um karateka está lutando é Karate ou Karate-Do[3]. Qual a diferença entre as duas palavras? Isso já é outro assunto, mas acredito que há diferenças. E, como disse sensei Juarez Alves, mais ou menos com essas palavras, “você tem que prestar atenção se o que você tá fazendo, mesmo saindo da forma, ainda é Karate”.

Mas a pergunta que inspirou este texto - e não esperem que eu consiga responde-la adequadamente - é: o que faz o Karate ser Karate? Como podemos saber se o que um lutador está lutando ou praticando é Karate? Acredito que a tentativa de dar uma resposta a essa pergunta pode ser dada por partes. Afirmo isso porque o Karate[4] é composto fundamentalmente – acredito que posso afirmar isso – de uma parte prática e de uma parte teórico/filosófica. Assim, observando a prática e o comportamento dos praticantes, podemos captar detalhes que nos remetem ao mundo do Karate e aí podemos afirmar: isso é – ou não – Karate.

Tentando identificar aspectos da prática/técnica para buscar diferenciais entre o Karate e outras lutas, observo que, apesar de o Karate-Do compartilhar diversas técnicas com outras artes marciais - o que, então, não serve para diferenciá-lo já que seria um ponto em comum com outras lutas e não um diferencial -, inclusive, artes marciais mais jovens como o Krav Maga que, me parece, tem técnicas muito parecidas com as que o Karate pode tirar dos seus kata e que até parecem ter vindo deles sendo, para mim, uma das que mais se aproximam da real efetividade do Karate; apesar de o Karate-Do precisar "sair da forma", citando mais uma vez o famoso raciocínio do sensei Alves, o que o diferencia das outras artes marciais ainda são, justamente, suas técnicas (refiro-me às aplicações em defesa pessoal e às técnicas de defesa/bloqueio)[5] e sua forma.

Fazer o Karate-Do e/ou o Karate, ser realmente o que é, requer que ele seja praticado de um jeito específico e com elementos próprios. A postura com centro de gravidade mais baixo e movimentos rápidos, diretos, contundentes e poderosos, o que vem da busca por acabar com a luta em poucos e, se possível, um único golpe[6] e também os movimentos circulares que são pouco praticados, com exceção do Mawashi Geri e do Ushiro Geri, são elementos que ajudam a identificar a técnica do Karate. Porém, socos diretos e circulares, chutes também diretos e circulares, esquivas e outras coisas encontramos em várias outras artes marciais, naturalmente, de formas bem diferentes ou bem parecidas.

Alguém pode dizer que uma característica marcante do Karate-Do é o do gi, ok, podemos considerar que sim, só que é muito fácil e até comum, ver alguém usando do gi, achando que está praticando Karate e estando, na realidade, um pouco longe disso. Por outro lado, eu posso fazer Karate sem um do gi (em situações de exceção). Não fica bonito, mas é possível. Portanto, mesmo o Karate tendo o seu do gi, a existência e o uso dele não é um diferencial tão forte assim, pois é apenas uma roupa e o Karate não está na roupa. Além disso, o do gi não é exclusividade do Karate.

Mas algo que diferencia bastante a técnica do Karate, na minha opinião, são os movimentos de “defesa”, mal compreendidos (repito, na minha opinião) e/ou mal ensinados por grande parte dos próprios karateka[7]. Esses, sim, me parecem ser algo peculiar do Karate. Ainda não vi esses movimentos em outras artes marciais. Porém, mesmo esses movimentos, precisam sair da forma, não da forma como são, sua postura, sua composição, sua mecânica, mas, sim, da forma de seus objetivos, para que possam ser, verdadeiramente, expressão de um Karate prático e não de um fantasioso. O que quero dizer com “objetivos”? Recorro aqui a (Nakayama, 2012, p. 114):

A maior diferença entre o karatê e outros esportes é que a pessoa tem que ser capaz de bloquear com técnicas de pés e pernas da mesma maneira que com técnicas de mãos e braços. Por isso, os pés e as pernas também são usados para bloquear. O karatê é único nesse sentido. Conforme já mencionamos, uma técnica de bloqueio, dependendo de como ela é usada, pode tornar-se uma técnica decisiva. Isso pode ser observado com frequência no karatê-do, embora não em outras artes marciais. Uma técnica que começa com um bloqueio e continua sem parar até se transformar numa ação decisiva é provavelmente única no karatê. (Nakayama, 2012, p. 118):

Notemos que, conforme Masatoshi Nakayama, uma técnica de defesa pode tornar-se uma técnica "decisiva", ou seja, um ataque ou o início de um, e aí está o objetivo a que me referia antes.

Me deixa muito incomodado na prática do Karate-Do as coisas que se treinam todos os dias, ano após ano, afirmando-se serem coisas que não são. Os movimentos de “defesa”[8] são o maior exemplo, pois defender socos e chutes da forma como se ensina é praticamente impossível. Caminhar para frente realizando movimentos supostamente de defesa enquanto o adversário caminha para trás fazendo movimentos de ataque não faz sentido.



Avançar batendo Jodan Age Uke: uma defesa?

Fonte: autor do texto

Argumenta-se que na prática do bunkai se aprendem as aplicações mais realistas, porém, o que vejo nos bunkai das competições por aí são movimentos que só funcionam se a pessoa tiver o dom da premonição ou da onisciência, pois, para tanto, é preciso enxergar, ao mesmo tempo, para frente, para trás e para os lados, para realizar, ao mesmo tempo, contra dois ou três adversários, defesas duplas, ou mais! O incômodo não é somente pela perda de tempo que isso provoca, mas, principalmente, pela impressão que provoca em todos que observam aquela prática repetitiva de “defesas” com o mínimo de interpretação e veem que o Karate-Do nunca vai funcionar daquele jeito. Acredito que não podemos treinar como se o adversário fosse colaborar conosco e esperar que nós aplicássemos nele uma técnica cinematográfica após um incrível movimento de defesa que parece obra de quem tem, como já disse, o dom da premonição.

Nesse caso, reforço, não é a técnica que tem que mudar para que seja realmente Karate-Do e sim, o objetivo dela e seu ensino. Não vou explicar aqui como eu entendo esses movimentos quando utilizados como ataques, mas o objetivo de ter feito essa colocação é para que eu possa dizer que essa prática vazia não faz o Karate ser Karate de verdade, mas sim uma mistificação. Você acha que isso é sinceridade demais? Talvez até um desrespeito com o(a) mestre(a) que insiste em ensinar assim? Bem, alguém nessa história não está sendo nem sincero nem honesto.

Portanto, para mim, concluo, o que caracteriza mais a técnica do Karate é a sua postura[9] com centro de gravidade baixo e suas técnicas de “defesa”, pois, socos e chutes encontramos em outras artes com maior ou menor diferença de como são feitos no Karate, mas suas posturas e suas "defesas" não encontramos.

Já no aspecto teórico/filosófico, o Karate também tem seus diferenciais.

Lembro que, há alguns anos, numa animada conversa sobre Karate num grupo de Whatsapp, uma pessoa falou algo que ficou na minha memória. Ele disse que o Karate é composto, também, de costumes e tradições. Concordo totalmente. O Karate é, antes de tudo, uma expressão da cultura de outro país, o Japão, e mais ainda, de Okinawa, onde se originou e, indo mais longe, da China, que lhe proporcionou essas origens. Esse aspecto é, portanto, um dos seus maiores diferenciais, ou seja, ser o veículo da propagação de costumes e tradições de culturas orientais ao redor do mundo, mesmo que sejam muito negligenciados e quando não negligenciados, praticados e/ou ensinados de forma equivocada.

Karate não é feito somente de socos e chutes como se imagina. Até onde se vê só isso, não é só isso que há. A prova disso são os kata, outra peculiaridade (não exclusividade) dele, que dependendo do entendimento do praticante, podem ser utilizados com objetivos que vão além do aspecto físico. Não me é possível aprofundar essa questão, mas os kata tem nomes, histórias, origens, enfim, são compostos por componentes da cultura dos lugares onde nasceram que fazem deles – para os que conhecem esses componentes – coisas que vão muito além da fútil serventia que têm para a maioria dos praticantes de hoje em dia, ou seja, ganhar medalhas e graduações. Os kata podem ser considerados fontes de estudo que levam o praticante a transcender a luta física partindo para uma “luta” com sua mente. Outros elementos que podemos citar são a etiqueta exigida no local de treino, os termos em língua japonesa que são utilizados, em alguns lugares a prática da limpeza do dojo (o soji)[10], o cuidado com o uniforme, etc., como componentes desse lado teórico/filosófico do Caminho das Mãos Vazias.

Na mesma linha de pensamento de que até onde se vê apenas socos e chutes no Karate, não é apenas isso que existe, lembro que na cultura japonesa há os conceitos chamados tatemae/honne e omote/ura (Lowry, 2011, pp. 20-21)

Alguns leitores devem saber da existência das duas “faces” do comportamento japonês, tatemae e honne. Estas são, respectivamente, a conduta que o japonês deve mostrar ao mundo – o rosto que mostram para as pessoas que estão fora de seus círculos de conhecidos íntimos – e os verdadeiros sentimentos dele que podem frequentemente ser opostos. Esses sentimentos reais nunca estão à mostra e só podem ser partilhados com pessoas íntimas, se o forem. A arte japonesa e outros aspectos de sua cultura tradicional têm muitos exemplos semelhantes do que está pelo “lado externo” e o que está escondido em seu interior. Essas facetas são chamadas, entre outras formas, de omote e ura. O lado omote de um kata, por exemplo, pode ser o que um observador desinformado quanto ao treinamento vai pensar que é uma sequência de combates combinados com antecedência. Uma espada é colocada contra outra, bloqueando um ataque no meio de uma sequência de ataque e defesa. A face ura do mesmo movimento, entretanto, pode ser completamente diferente. O suposto bloqueio pode ser na verdade um golpe, cujo significado está oculto por uma distância enganadora entre os dois praticantes. Ou pode ser uma maneira de anular um movimento agressivo do oponente, forçando-o a ficar em uma posição desajeitada com sua arma, o que o deixa vulnerável. O que quero dizer é que, quando se começa a considerar as ramificações de omote/ura, raramente uma rosa é uma rosa. Ela pode, na verdade, nem ser uma flor. E o que se vê na superfície é quase inevitavelmente apenas uma fração do que está escondido por baixo.

Particularmente, apesar de ser um inexpressivo praticante que, apesar de ter chegado ao primeiro kiu (faixa marrom), tem muitas deficiências técnicas e limitações físicas, gosto de praticar e entender à minha maneira. Ouço, recebo e procuro aprender e apreender o que me é ensinado, mas tenho minha visão particular sobre a arte e procuro desenvolvê-la, apesar de não ter um companheiro de treino para que possamos nos ajudar e que esteja disposto a “sair da forma”. Assim, treino (quando posso) e penso sozinho.

Mas a resposta à pergunta inicial, até agora, foi uma opinião minha. Conversando com um amigo sobre o assunto, o Leonardo Garcia, ele me deu a opinião dele e me autorizou a colocar aqui para que se tenha uma visão mais abrangente do assunto, diferente de outros a quem solicitei a mesma colaboração, que preferiram não expor seus pontos de vista:

O que faz o Karatê ser Karatê? Dentro de anos de prática, treinos e estudos dentro da arte marcial Karatê-Dô, posso dizer que o que faz o Karatê ser o que é, é a sua cultura, disciplina e especialização em defesa pessoal usando-se diversas técnicas corporais como socos, chutes, torções, quedas entre outras... é o que a torna uma das artes marciais mais completa do Mundo, e o próprio karateca, aquele que mantém a chama acesa da vontade, segue e vivência os príncipios e ensinamentos que esta arte marcial o induz, claro que ninguém segue a risca todos os ensinamentos que o Dojôkun e Nijukun ensina, ninguém é perfeito, entretanto se você melhora como pessoa em diversos aspectos mesmo que não 100%, sim você está cumprindo o que o Karatê-Dô oferta de melhor, principalmente o faixa preta (sensei) tem essa maior responsabilidade de transferir conhecimentos, técnicas e passar seu exemplo como karateca e boa conduta social.

Caso queira, fique à vontade para opinar também sobre o que faz o Karate ser Karate, na sua opinião.

Oss!

Fontes

1.    Lowry, D. (2011). O Dojo e seus significados. Um guia para os rituais e etiqueta das artes marciais japonesas (1ª ed.). (J. S. Freire, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.

2.    NAKAYAMA, M. (1977). O melhor do Karatê (Vol. 1). (C. Fischer, Trad.) São Paulo, São Paulo, Brasil: Cultrix.

3.    Nakayama, M. (2012). O melhor do Karate (9ª ed., Vol. 2). (C. Fischer, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.

4.    SANCHES, E. J. (09 de Fevereiro de 2022). A tradição no Karate.

5.    SILVA, H. P. (09 de 10 de 2021). As posições do Karate-Do: bases ou posturas? As dificuldades de entender e a preguiça. Acesso em 30 de janeiro de 2022, disponível em Meus aprendizados no Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/10/as-posicoes-do-karate-do-bases-ou.html

6.    SILVA, H. P. (14 de 11 de 2021). Se eu praticar outra arte marcial meu Karate vai melhorar? Acesso em 18 de 02 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/11/se-eu-praticar-outra-arte-marcial-meu.html

 



[1] Estranhamos porque estamos acostumados a ver, apenas os golpes permitidos nas competições.

[2] Texto sobre a tentativa de melhorar o Karate-Dô praticando outras artes marciais.

Disponível em: <https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/11/se-eu-praticar-outra-arte-marcial-meu.html>. Acessado em 18/02/2022.

[3] Infelizmente já vi gente falando que isso é irrelevante e que o que importa, na realidade, é divulgar (vender) o Karate, independentemente de se a pessoa está, por exemplo, no evento denominado “Karate Combat” lutando box ou Muay Thai. O que importa é vender “Karate”.

[4] Quando escrevo “Karate”, sem a partícula “Do”, me refiro ao Karate de uma forma mais abrangente, sem me prender apenas ao Shotokan. Quando escrevo “Karate-Do” estou me referindo mais ao Karate em sua versão Shotokan com seus princípios filosóficos.

[5] No meu atual entendimento, há técnicas de defesa e técnicas de bloqueio. As primeiras se destinam a desviar ou mudar a trajetória do golpe do adversário e não a pará-las; As segundas, realmente bloqueiam o ataque, fazendo ele parar antes de atingir o alvo.

[6] Objetivo que está incluído no conceito denominado Ikken Hissatsu, que pode ser traduzido como “um golpe, uma vida” conforme (NAKAYAMA, 1977, p. 11) e como “um soco certamente mata” (SANCHES, 2022).

[7] Muitas professoras e professores afirmam saber que as “defesas” do Karate-Do são, também, movimentos de ataque, assim, resta saber porque não se ensina isso, se bem que a resposta parece obvia e redundante.

[8] Coloco entre aspas porque as chamadas defesas nem sempre devem ser interpretadas dessa forma, pois podem ser ataques.

[9] Disponível em: <https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/10/as-posicoes-do-karate-do-bases-ou.html>. Acesso em: 30/01/2022. Neste texto explico porque entendo que em vez de utilizar o termo “base” utilizo o termo “postura” para me referir às posições do corpo na prática do Karate-Do.

[10] E há sempre os que acreditam que isso tudo não tem utilidade, sendo apenas um acessório que pode ser retirado sem prejuízo para o Karate, coisa com a qual não concordo.

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