O QUE FAZ O KARATE SER KARATE?
Humberto
Pereira da Silva
Natal/
Que elementos
dão ao Karate a sua “cara”, a sua essência? O que o faz ser o que é? Para mim,
parecia que a resposta a essa pergunta seria simples (kihon, kata e kumite), mas ao tentar
escrever sobre isso, me vieram muitas questões. Segue o que consegui expressar
de forma escrita.
Às vezes nos causa surpresa ver
alguém ensinar no Karate movimentos e
posturas com aplicações que não se prendem tanto às formas impostas pela
prática engessada e repetitiva que sempre vemos. Se vemos alguém treinando
coisas como a posição das mãos em guarda próximas à cabeça, socos em movimentos
semi-circulares (mawashi zuki, por
exemplo), cotoveladas, joelhadas
e outras coisas que geralmente não vemos no Karate,
estranhamos[1]. Muitas vezes vemos pessoas que chegam
à faixa preta e não sabem bater com o punho, ou seja, dar um soco, apesar de já
terem dado milhares de socos no ar. Pelo fato de nunca terem batido em nada e
ficarem só socando o ar, quando acertam algo o punho entorta. Mesmo assim, se
veem alguém treinando num saco de pancadas ou num aparador, dizem que isso é
coisa de boxeador ou de praticante de Muay
Thai. Tem gente que estranha até treino na makiwara.
Essa é uma forma preconceituosa de
ver o Karate-Do
– quando menos, é só por falta de um conhecimento melhor, mesmo - e é
direcionada a uma parte dos karateka,
geralmente, uma parte que é meio isolada do movimento que predomina no Karate, ou seja, o Karate esportivo, uma vez que as formas mais realistas de se interpretar
os movimentos dessa arte marcial não se encaixam nessa modalidade. É
necessário que se pratique um Karate-Do mais
marcial, porém, também é preciso que não se confunda
uma prática de um Karate-Do mais
realista com outras formas de luta.[2] Karate tem que continuar
sendo Karate.
Falo
dessa forma porque há ao longo do tempo uma tendência em se desvirtuar o Karate-Do, tanto dentro do ambiente do
próprio Karate, com uma
prática muitas vezes ridícula, perpetuando cada vez mais um Karate inútil, como no ambiente
de outras artes marciais com comentários deselegantes e desrespeitosos sobre
ele, geralmente partindo de quem tem um conhecimento desprezível sobre a arte,
conhecendo apenas ramificações que lhe provocam prejuízo.
O Karate é muito “testado” nesses eventos
grandiosos em que as artes marciais se enfrentam (o UFC e vários outros),
porém, não é porque um lutador é karateka que
ele estará necessariamente lutando Karate
ali, e aí, deve-se ter muito
cuidado para não se dizer que aquilo que um karateka está lutando é Karate ou Karate-Do[3]. Qual a diferença
entre as duas palavras? Isso já
é outro assunto, mas acredito que há diferenças. E, como disse sensei Juarez Alves, mais ou menos com essas palavras, “você
tem que prestar atenção se o que você tá fazendo, mesmo saindo da forma, ainda
é Karate”.
Mas
a pergunta que inspirou este texto - e não esperem que eu consiga responde-la
adequadamente - é: o que faz o Karate ser Karate? Como podemos saber se o que um
lutador está lutando ou praticando é Karate?
Acredito que a tentativa de dar uma resposta a essa pergunta pode ser dada por
partes. Afirmo isso porque o Karate[4] é composto
fundamentalmente – acredito que posso afirmar isso – de uma parte prática e de
uma parte teórico/filosófica. Assim, observando a prática e o comportamento dos
praticantes, podemos captar detalhes que nos remetem ao mundo do Karate e aí podemos afirmar: isso é – ou
não – Karate.
Tentando
identificar aspectos da prática/técnica para buscar diferenciais entre o Karate e outras lutas, observo que,
apesar de o Karate-Do compartilhar
diversas técnicas com outras artes marciais - o que, então, não serve para
diferenciá-lo já que seria um ponto em comum com outras lutas e não um
diferencial -, inclusive, artes marciais mais jovens como o Krav Maga que, me parece, tem
técnicas muito parecidas com as que o Karate pode
tirar dos seus kata e que até parecem
ter vindo deles sendo, para mim, uma das que mais se aproximam da real
efetividade do Karate; apesar de
o Karate-Do precisar
"sair da forma", citando mais uma vez o famoso raciocínio do sensei Alves, o que o diferencia das
outras artes marciais ainda são,
justamente, suas técnicas (refiro-me às aplicações em defesa pessoal e às
técnicas de defesa/
Fazer
o Karate-Do e/ou o Karate, ser realmente o que é, requer que ele seja praticado de um
jeito específico e com elementos próprios. A postura com centro de gravidade
mais baixo e movimentos rápidos, diretos, contundentes e poderosos, o que vem
da busca por acabar com a luta em poucos e, se possível, um único golpe[6] e
também os movimentos circulares que são pouco praticados, com exceção do Mawashi Geri e
do Ushiro Geri, são elementos que ajudam a identificar a técnica do Karate. Porém, socos diretos e circulares,
chutes também diretos e circulares, esquivas e outras coisas encontramos em
várias outras artes marciais, naturalmente, de formas bem diferentes ou bem
parecidas.
Alguém pode dizer que uma característica marcante do Karate-Do é o do gi, ok, podemos considerar que sim,
só que é muito fácil e até comum, ver alguém usando do gi, achando que está praticando Karate e estando, na realidade, um pouco longe disso. Por outro
lado, eu posso fazer Karate sem um do gi (em situações de exceção). Não fica bonito, mas é possível.
Portanto, mesmo o Karate tendo o seu do gi, a existência e o uso dele não é
um diferencial tão forte assim, pois é apenas uma roupa e o Karate não está na roupa. Além disso, o do gi não é exclusividade do Karate.
Mas
algo que diferencia bastante a técnica do Karate,
na minha opinião, são os movimentos de “defesa”, mal compreendidos (repito, na minha opinião) e/ou mal ensinados por grande parte dos próprios karateka[7]. Esses, sim, me
parecem ser algo peculiar do Karate. Ainda
não vi esses movimentos em outras artes marciais. Porém, mesmo esses
movimentos, precisam sair da forma, não da forma como são, sua postura, sua
composição, sua mecânica, mas, sim, da forma de seus objetivos, para que possam
ser, verdadeiramente, expressão de um Karate
prático e não de um fantasioso. O que
quero dizer com “objetivos”? Recorro aqui a
A maior diferença entre o karatê e outros esportes é que a pessoa tem
que ser capaz de bloquear com técnicas de pés e pernas da mesma maneira que com
técnicas de mãos e braços. Por isso, os pés e as pernas também são usados para
bloquear. O karatê é único nesse sentido. Conforme já mencionamos, uma técnica
de bloqueio, dependendo de como ela é usada, pode tornar-se uma técnica
decisiva. Isso pode ser observado com frequência no karatê-do, embora não em
outras artes marciais. Uma técnica que começa com um bloqueio e continua sem
parar até se transformar numa ação decisiva é provavelmente única no karatê.
Notemos que, conforme Masatoshi Nakayama, uma técnica de defesa pode
tornar-se uma técnica "decisiva", ou seja, um ataque ou o início de
um, e aí está o objetivo a que me referia antes.
Me deixa muito incomodado na prática do Karate-Do as coisas que se treinam todos os dias, ano após ano,
afirmando-se serem coisas que não são. Os movimentos de “defesa”[8] são o
maior exemplo, pois defender socos e chutes da forma como se ensina é praticamente impossível. Caminhar para frente realizando movimentos supostamente
de defesa enquanto o adversário caminha para trás fazendo movimentos de ataque
não faz sentido.
Avançar batendo
Jodan Age Uke: uma defesa?
Fonte: autor do texto
Argumenta-se que na prática do bunkai
se aprendem as aplicações mais realistas, porém, o que vejo nos bunkai das competições por aí são
movimentos que só funcionam se a pessoa tiver o dom da premonição ou da onisciência,
pois, para tanto, é preciso enxergar, ao mesmo tempo, para frente, para trás e
para os lados, para realizar, ao mesmo tempo, contra dois ou três adversários,
defesas duplas, ou mais! O incômodo não é somente
pela perda de tempo que isso provoca, mas, principalmente, pela impressão que
provoca em todos que observam aquela prática repetitiva de “defesas” com o
mínimo de interpretação e veem que o Karate-Do
nunca vai funcionar daquele jeito. Acredito que não podemos treinar como se
o adversário fosse colaborar conosco e esperar que nós aplicássemos nele uma técnica cinematográfica após um incrível
movimento de defesa que parece obra de quem tem, como já disse, o dom da premonição.
Nesse caso, reforço, não é a técnica que tem que mudar para que seja realmente
Karate-Do e sim, o objetivo dela e
seu ensino. Não vou explicar aqui como eu entendo esses movimentos quando
utilizados como ataques, mas o objetivo de ter feito essa colocação é para que
eu possa dizer que essa prática vazia não faz o Karate ser Karate de
verdade, mas sim uma mistificação. Você acha que isso é sinceridade demais?
Talvez até um desrespeito com o(a) mestre(a) que insiste em ensinar assim? Bem,
alguém nessa história não está sendo nem sincero nem honesto.
Portanto,
para mim, concluo, o que
caracteriza mais a técnica do Karate é
a sua postura[9] com
centro de gravidade baixo e suas técnicas de “defesa”, pois, socos e chutes
encontramos em outras artes com maior ou menor diferença de como são feitos no Karate, mas suas posturas e suas
"defesas" não encontramos.
Já
no aspecto teórico/filosófico, o Karate
também tem seus diferenciais.
Lembro
que, há alguns anos, numa animada conversa sobre Karate num grupo de Whatsapp,
uma pessoa falou algo que ficou na minha memória. Ele disse que o Karate é composto, também, de costumes e
tradições. Concordo totalmente. O Karate é,
antes de tudo, uma expressão da cultura de outro país, o Japão, e mais ainda,
de Okinawa, onde se originou e, indo mais longe, da China, que lhe proporcionou
essas origens. Esse aspecto é, portanto, um dos seus maiores diferenciais, ou
seja, ser o veículo da propagação de costumes e tradições de culturas orientais
ao redor do mundo, mesmo que sejam muito negligenciados e quando não
negligenciados, praticados e/ou ensinados de forma equivocada.
O Karate não
é feito somente de socos e chutes como se imagina. Até onde se vê só isso, não
é só isso que há. A prova disso são os kata, outra
peculiaridade (não exclusividade) dele, que dependendo do entendimento do praticante,
podem ser utilizados com objetivos que vão além do aspecto físico. Não me é
possível aprofundar essa questão, mas os kata
tem nomes, histórias, origens, enfim, são compostos por componentes da cultura
dos lugares onde nasceram que fazem deles – para os que conhecem esses
componentes – coisas que vão muito além da fútil serventia que têm para a
maioria dos praticantes de hoje em dia, ou seja, ganhar medalhas e graduações.
Os kata podem ser considerados fontes
de estudo que levam o praticante a transcender a luta física partindo para uma
“luta” com sua mente. Outros elementos que podemos citar são a etiqueta exigida
no local de treino, os termos em língua japonesa que são utilizados, em alguns
lugares a prática da limpeza do dojo (o
soji)[10], o cuidado com o uniforme,
etc., como componentes desse lado teórico/filosófico do Caminho das Mãos
Vazias.
Na
mesma linha de pensamento de que até onde se vê apenas socos e chutes no Karate, não é apenas isso que existe, lembro
que na cultura japonesa há os conceitos chamados tatemae/honne e omote/ura
Alguns leitores devem saber da existência das duas “faces”
do comportamento japonês, tatemae e honne. Estas são, respectivamente, a
conduta que o japonês deve mostrar ao mundo – o rosto que mostram para as
pessoas que estão fora de seus círculos de conhecidos íntimos – e os
verdadeiros sentimentos dele que podem frequentemente ser opostos. Esses
sentimentos reais nunca estão à mostra e só podem ser partilhados com pessoas
íntimas, se o forem. A arte japonesa e outros aspectos de sua cultura
tradicional têm muitos exemplos semelhantes do que está pelo “lado externo” e o
que está escondido em seu interior. Essas facetas são chamadas, entre outras
formas, de omote e ura. O lado omote de um kata, por
exemplo, pode ser o que um observador desinformado quanto ao treinamento vai
pensar que é uma sequência de combates combinados com antecedência. Uma espada
é colocada contra outra, bloqueando um ataque no meio de uma sequência de ataque
e defesa. A face ura do mesmo
movimento, entretanto, pode ser completamente diferente. O suposto bloqueio
pode ser na verdade um golpe, cujo significado está oculto por uma distância
enganadora entre os dois praticantes. Ou pode ser uma maneira de anular um
movimento agressivo do oponente, forçando-o a ficar em uma posição desajeitada
com sua arma, o que o deixa vulnerável. O que quero dizer é que, quando se
começa a considerar as ramificações de omote/ura,
raramente uma rosa é uma rosa. Ela pode, na verdade, nem ser uma flor. E o que
se vê na superfície é quase inevitavelmente apenas uma fração do que está
escondido por baixo.
Particularmente,
apesar de ser um inexpressivo praticante que, apesar de ter chegado ao primeiro
kiu (faixa marrom), tem muitas
deficiências técnicas e limitações físicas, gosto de praticar e entender à
minha maneira. Ouço, recebo e procuro aprender e apreender o que me é ensinado,
mas tenho minha visão particular sobre a arte e procuro desenvolvê-la, apesar
de não ter um companheiro de treino para que possamos nos ajudar e que esteja
disposto a “sair da forma”. Assim, treino (quando posso) e penso sozinho.
Mas
a resposta à pergunta inicial, até agora, foi uma opinião minha. Conversando
com um amigo sobre o assunto, o Leonardo Garcia, ele me deu a opinião dele e me autorizou a
colocar aqui para que se tenha uma visão mais abrangente do assunto, diferente de
outros a quem solicitei a mesma colaboração, que preferiram não expor seus
pontos de vista:
O que faz o Karatê ser Karatê? Dentro de anos de
prática, treinos e estudos dentro da arte marcial Karatê-Dô, posso dizer que o
que faz o Karatê ser o que é, é a sua cultura, disciplina e especialização em
defesa pessoal usando-se diversas técnicas corporais como socos, chutes,
torções, quedas entre outras... é o que a torna uma das artes marciais mais
completa do Mundo, e o próprio karateca, aquele que mantém a chama acesa da
vontade, segue e vivência os príncipios e ensinamentos que esta arte marcial o
induz, claro que ninguém segue a risca todos os ensinamentos que o Dojôkun e
Nijukun ensina, ninguém é perfeito, entretanto se você melhora como pessoa em
diversos aspectos mesmo que não 100%, sim você está cumprindo o que o Karatê-Dô
oferta de melhor, principalmente o faixa preta (sensei) tem essa maior
responsabilidade de transferir conhecimentos, técnicas e passar seu exemplo como
karateca e boa conduta social.
Caso
queira, fique à vontade para opinar também sobre o que faz o Karate ser Karate, na sua opinião.
Oss!
Fontes
1. Lowry, D. (2011). O Dojo e seus significados. Um guia para os rituais
e etiqueta das artes marciais japonesas (1ª ed.). (J. S. Freire, Trad.)
São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.
2. NAKAYAMA, M. (1977). O melhor do Karatê (Vol. 1). (C.
Fischer, Trad.) São Paulo, São Paulo, Brasil: Cultrix.
3. Nakayama, M. (2012). O melhor do Karate (9ª ed., Vol.
2). (C. Fischer, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.
4. SANCHES, E. J. (09 de Fevereiro de 2022). A tradição no
Karate.
5. SILVA, H. P. (09 de 10 de 2021). As posições do Karate-Do:
bases ou posturas? As dificuldades de entender e a preguiça. Acesso em 30
de janeiro de 2022, disponível em Meus aprendizados no Karate:
https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/10/as-posicoes-do-karate-do-bases-ou.html
6. SILVA, H. P. (14 de 11 de 2021). Se eu praticar outra
arte marcial meu Karate vai melhorar? Acesso em 18 de 02 de 2022,
disponível em Meus aprendizados sobre Karate:
https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/11/se-eu-praticar-outra-arte-marcial-meu.html
[1] Estranhamos porque estamos acostumados a ver, apenas
os golpes permitidos nas competições.
[2] Texto sobre a tentativa de melhorar o Karate-Dô praticando outras artes
marciais.
Disponível
em: <https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/11/se-eu-praticar-outra-arte-marcial-meu.html>. Acessado em 18/02/2022.
[3] Infelizmente já vi gente falando que isso é
irrelevante e que o que importa, na realidade, é divulgar (vender) o Karate, independentemente de se a pessoa
está, por exemplo, no evento denominado “Karate
Combat” lutando box ou Muay Thai.
O que importa é vender “Karate”.
[4] Quando escrevo “Karate”, sem a partícula “Do”,
me refiro ao Karate de uma forma
mais abrangente, sem me prender apenas ao Shotokan.
Quando escrevo “Karate-Do” estou
me referindo mais ao Karate em sua
versão Shotokan com seus princípios
filosóficos.
[5] No
meu atual entendimento, há técnicas de defesa e técnicas de bloqueio. As
primeiras se destinam a desviar ou mudar a trajetória do golpe do adversário e
não a pará-las; As segundas, realmente bloqueiam o ataque, fazendo ele parar
antes de atingir o alvo.
[6] Objetivo que está incluído no conceito
denominado Ikken Hissatsu, que pode
ser traduzido como “um golpe, uma vida” conforme
[7] Muitas professoras e professores afirmam
saber que as “defesas” do Karate-Do
são, também, movimentos de ataque, assim, resta saber porque não se ensina
isso, se bem que a resposta parece obvia e redundante.
[8] Coloco entre aspas porque as chamadas defesas nem
sempre devem ser interpretadas dessa forma, pois podem ser ataques.
[9] Disponível em: <https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/10/as-posicoes-do-karate-do-bases-ou.html>. Acesso em: 30/01/2022. Neste texto explico porque entendo que em
vez de utilizar o termo “base” utilizo o termo “postura” para me referir às
posições do corpo na prática do Karate-Do.
[10] E há sempre os que acreditam que isso
tudo não tem utilidade, sendo apenas um acessório que pode ser retirado sem
prejuízo para o Karate, coisa com a
qual não concordo.