Karate: Jutsu?

 KARATE: JUTSU?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 30/04/2021

 

 

O Karate é algo que desperta muitas dúvidas tanto na sua parte prática como na sua parte teórica. O próprio nome da arte marcial já é objeto de muitas controvérsias pelo fato de a sua tradução dar a entender que ela trata de uma técnica em que não se devem utilizar armas (mãos vazias), para uns, e para outros, por dar a entender que esse “mãos vazias” é apenas uma expressão do que o praticante deve buscar em sua caminhada (Do) na trilha do Karate, ou seja, esvaziar-se de uma personalidade ruim e procurar tornar-se alguém melhor por meio da prática da arte marcial (Budo).

Mas o nome do Karate não desperta apenas essa problemática. A partícula Do, que foi a ele anexada na época em que a arte marcial chegou ao Japão é, por uns, hoje em dia, substituída por Jutsu. O objetivo, nos parece, não é apenas um, mas vamos procurar nos ater aqui ao que consideramos mais nobre, que é um suposto resgate das técnicas de combate corpo a corpo que tem sido esquecidas ao longo dos anos por conta de questões que não cabem ser abordadas aqui[1], mas que poderia ser realizado sem essa novidade no nome da arte.

As artes marciais no Japão, como se sabe, fazem parte da história daquele país há séculos – fala-se, inclusive, de milênios. Não é a toa que essas artes têm tão grande tradição ali, sendo parte muito importante dos costumes da sociedade. É uma indubitável marca da cultura japonesa pela qual ela é conhecida mundialmente. O país sempre foi palco de guerras e disputas por territórios e um dos recursos mais úteis nesses confrontos era o poder militar e enquanto não houve a chegada das chamadas armas de fogo – e ainda por muito tempo após essa chegada -, o domínio das artes marciais foi o principal instrumento de guerra. Várias formas de lutar, utilizando-se do próprio corpo e de armas, foram se aperfeiçoando e se especializando. Sobre isso, trazemos a seguinte informação extraída de (As artes marciais):

A maioria das artes marciais japonesas, ou budo, tem histórias que remetem ao período proto-histórico. Yabusame, ou tiro com arco sobre cavalo, teve seu início no século VII. Com a ascensão da classe guerreira no final do século XII, o bushi, ou samurai (membros da classe guerreira), treinavam modalidades como kenjutsu (arte da espada), iaijutsu (arte de simulação com espadas), jujutsu (combate sem armas), kyujutsu (tiro com arcos japonês), sojutsu (arte com lanças), bajutsu (montaria a cavalo), e suijutsu (natação). Essas modalidades gradualmente se tornaram padrão e eram praticados em escolas, as quais continuaram mesmo após o fim do período feudal durante o período Edo (1600-1868).

Por essa lista podemos notar que as artes marciais eram nominadas recebendo sempre a partícula Jutsu no final.  É notável, também, que aí não figura o “Karate Jutsu”. Para economizar seu tempo, informamos que não será encontrada em nenhuma lista séria de artes marciais do Japão feudal o Karate, seja com ou sem o Jutsu no nome. Mas, porquê?

Na mesma fonte das informações acima, ainda que de forma resumida, há a informação de que o Karate “foi desenvolvido há mais de mil anos na China. Ele foi introduzido na ilha de Okinawa (que era um reino independente) há muitos séculos como uma forma de defesa sem armas”. Apesar de não concordarmos em que o Karate tenha se desenvolvido na China, e sim que ele foi desenvolvido em Okinawa, descendendo das artes marciais chinesas, isso já serve para entendermos que a arte não é japonesa, pelo menos originalmente japonesa. Dessa forma, não poderia ter recebido uma nomenclatura japonesa, ou seja, não poderia se chamar, como alguns pretendem, Karate Jutsu, uma vez que não existia ainda no Japão! Outro motivo é que, não podendo receber um nome com a partícula em questão, mesmo quando o termo estava em uso, pois era algo praticado em outro país, e não existia no Japão, imaginemos hoje em dia, quando ele é inadequado para as artes marciais que fazem parte do Budo, uma vez que Budo e Jutsu são termos com significados e simbolismos bem diferentes e, podemos dizer, opostos em alguns aspectos. O uso do Jutsu hoje em dia, teria, afirma-se, o objetivo de fazer um resgate das técnicas de luta antigas do Karate, mas não se atenta que essas técnicas não eram praticadas no Japão e sim em Okinawa e mais remotamente, na China. Seria, portanto, mais justo, que se fizesse esse resgate sem ter que utilizar-se de um termo que nunca foi associado ao Karate e que, sendo utilizado hoje em dia, é inadequado, devendo-se, portanto, utilizar-se normalmente do termo Karate-Do e reintroduzir nele as técnicas recuperadas.

Como vimos, o uso da partícula Jutsu tem um uso que supera o seu simples significado de técnica ou arte – o que, por esse simples significado, poderia ser utilizado ainda hoje tranquilamente associado às artes marciais - e passa a indicar um modo de ser e um objetivo que as artes marciais tinha numa determinada época, e ainda mais, indica que a partir de uma outra época, ela passou a não mais ser utilizada sendo substituída por Do. É lógico que se essa palavra ou qualquer outra era utilizada não somente pelo seu significado literal (técnica ou arte), mas por uma tradição que ela indicava, e essa tradição passou a não mais ter a força e a utilidade que tinham na sociedade, a palavra passa a cair em desuso e é, então, substituída por outra mais apropriada. Foi o que ocorreu com o Jutsu em relação a Do.

O Karate chama a atenção também, por ser uma arte marcial que conta com um acervo muito interessante de livros. Alguns, como consideramos[2], são clássicos e devem nortear nossas reflexões sobre a arte. Entre esses que assim consideramos, há os de Gichin Funakoshi. Um deles se chama Ryükyü Kempo: Karate, publicado em 1922, com reedição quatro anos depois, conforme palavras do autor, em sua obra (FUNAKOSHI, 2010):

Este livro teve grande popularidade e foi reeditado quatro anos mais tarde, já revisado, por Kobundo. Seu titulo foi alterado para Renten Goshin Karate-jutsu (Fortalecimento a vontade e autodefesa através de técnicas de karatê).

 


Fonte: http://www.flaviocosta-karatedo.com/2013/02/as-tecnicas-perdidas-de-arremesso-do.html


Pelo fato de aparecer no título desse livro – e de outros de outros autores - a expressão “Karate-jutsu”, ele é utilizado como justificativa para a utilização dessa expressão como sendo adequada para o Karate atual, pois ele descende de Funakoshi. Ora, note-se, porém, que a tradução do título do livro é “Fortalecimento a vontade e auto defesa através de técnicas de karatê”. A palavra Jutsu é aí utilizada claramente apenas com o significado literal de “técnica”, não fazendo referência alguma a um suposto Karate da época dos samurai, o qual, na sua época, Funakoshi estaria apresentando. Isso nos parece bem claro.

Porém, uma hipótese nossa, é que, como as pessoas que ajudaram na reedição e revisão do livro, tiveram grande importância, até mesmo porque Funakoshi não tinha recursos para tanto, podem ter tido influência no nome do livro. Consta que essa edição de 1925/1926 é, basicamente, a de 1922 com complementos, ou seja, bastaria ao autor que fosse realizada essa segunda edição com o mesmo nome e não que fosse modificado totalmente o título do livro. Levantamos essa possibilidade, pois, até aqui, não temos a informação de que nos livros de Funakoshi ele utilize a expressão “Karate-jutsu”, como está na capa dessa e de várias outras reedições. Numa rápida pesquisa encontramos quatro edições diferentes, cada uma em uma língua (Espanhol, Inglês, Francês e Italiano, sem falar na original em Nihongo). Porém, lembramos que não foi por nós lido esse livro em questão e pode ser que ali ele a utilize.

Mas, por que propor atualmente essa novidade no nome do Karate-Do? Se o objetivo é um resgate de técnicas antigas, isso pode e deve ser feito – como já opinamos no início - sem que se chame o Karate-Do por outro nome, até porque, como também já dissemos, essa arte marcial nunca teve no seu nome a partícula Jutsu e, portanto, não precisa ser recuperada, pois não foi retirada ou erroneamente substituída.

Passemos a falar um pouco sobre um outro livro que chama muito a atenção pelo uso da palavra Jutsu associada a Karate na sua capa: Jutsu: A Arte Oculta no Karate (ANTONY, 2015). Devemos informar que, essa breve pesquisa foi iniciada por conta da curiosidade que esse conjunto de palavras, que nunca havíamos visto em outro lugar, nos causou, sendo por nós vista pela primeira vez na capa divulgada desse livro e também, por ter sido assunto de uma conversa com o autor de uma publicação na internet sobre o tema.

Em “nota do autor”, na obra citada, o autor utiliza-se por sete vezes da expressão “o karate jutsu” – inclusive, em um trecho, escreve “primeiro estilo de karate Jutsu” -, deixando claro que, para ele, isso é uma forma de karate e que ele não está utilizando esse “jutsu” para expressar apenas técnica ou arte, mas, repito, uma forma de Karate, um Karate específico, que existiu, mas não mais existe, e que precisa ser recuperado.

Mais à frente, há o seguinte trecho: “[...] técnicas propostas por matsumura[3] e por tantos outros “mestres” do passado, que trabalharam arduamente para criar, transmitir e proteger a verdadeira “técnica das mãos chinesas”, o karate jutsu”. Ou seja, ele afirma que no passado foi criado algo chamado de técnica das mãos chinesas, que é a mesma coisa que o karate jutsu. Não é possível, apenas pela leitura desse trecho, saber se o autor utiliza a expressão karate jutsu como já existente naquela época ou se ele utiliza um termo por ele cunhado atualmente para se referir a algo do passado. Fica confuso.

Minha intenção não é avaliar nem fazer resenha do livro – o que posso me aventurar a fazer pela primeira vez após a leitura dele -, mas, apenas, tentar entender o motivo da utilização dessa expressão que nunca vi em outros livros ou em qualquer outro lugar de divulgação ou estudo do Karate-Do, antes da aparição desse livro. Por enquanto só li a parte disponibilizada num site de venda de livros, o que me deu algumas impressões iniciais, entre elas, a de que o livro é muito curto para tratar do assunto a que se propõe (168 páginas), principalmente pelos temas abordados no sumário. Até onde li, não está explicado o que significa a expressão Karate Jutsu, mas no capítulo 5, Karate Jutsu, o autor parece que se dedica a isso. Ele parece buscar, pelo que se pode entender das suas palavras, se livrar e ajudar a outros praticantes a se livrarem do misticismo que permeia o Karate, retirar vendas dos olhos dos praticantes de um Karate desvirtuado e desviado de seu verdadeiro caminho, repassar seus conhecimentos acumulados em décadas de prática e o legado dos seus sensei. Tudo isso é uma intensão que achei muito válida e necessária, porém, caso não fique bem explicada a origem dessa nomeação que ele dá ao Karate, vai acabar criando outra fonte de fantasia em torno da arte.

Enfim, parece ser um bom livro, mas, pelo menos pela leitura do trecho que vimos até aqui, ele nos trás algo novo para o conhecimento dos karateka e, claro, é preciso ler toda a obra para uma melhor compreensão desse termo tão curioso.

O uso do sufixo Jutsu associado a Karate não é um problema em si. Não estamos nos opondo a isso, desde que tenha um significado razoável. A questão é que tendemos a jugar o livro pela capa e, ainda mais, pelo título. Quando alguém – eu, por exemplo – lê na capa de um livro a palavra Jutsu em conjunto com a palavra Karate, é levado a um imaginário e uma mística que são criados em torno da palavra Jutsu, a uma associação com uma técnica de arte marcial que tem muito de fantasioso e que, como já abordamos acima, nos remete a uma época específica das artes marciais japonesas. É preciso, portanto, que além de se criar uma coisa chamativa como é a capa do livro - e isso não está errado - se explique qual o uso específico da palavra que é nosso assunto, o que parece que o autor do livro faz, como já frisamos, no seu capítulo 5. Porém, mesmo com essa explicação que esperamos, possa desfazer a impressão inicial a que me referi e a qual fui levado, essa impressão já está criada e sabemos que poucos passam da capa para as páginas dos livros, julgando-o apenas por essa capa e seu título, achando que por aí já conhecem seu conteúdo e, pior, espalhando essa talvez falsa dedução que fazem, o que é um prejuízo tanto para a obra como para o próprio Karate-do, já tão prejudicado.

Por enquanto, estou seguindo o conselho que o próprio autor dá em sua obra: “Certamente, não queremos o embuste, contudo seremos vítima dele sempre que permitirmos que pensem por nós, aceitando qualquer coisa que nos é dita sem nunca questionar”.

 

Oss!

Obras Citadas

1.    ANTONY, V. (2015). Jutsu: A Arte Oculta no Karate (1ª ed.). Caçador, SC, Brasil: Global Soccer Editora LTDA.

2.    As artes marciais. (s.d.). Acesso em 30 de Abril de 2021, disponível em Embaixada do Japão no Brasil: https://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/artesmarciais.html

3.    As técnicas "perdidas" de arremesso do Karate. (05 de fevereiro de 2013). Acesso em 05 de maio de 2021, disponível em Karate-Do Flavio Costa: http://www.flaviocosta-karatedo.com/2013/02/as-tecnicas-perdidas-de-arremesso-do.html

4.    FUNAKOSHI, G. (2010). KARATE-DO, O meu Modo de Vida. São Paulo: Cultrix.

 

 



[1] Caso se interesse, pode ser lido o texto “A evolução do Karate. Pobre Karate-Do”, disponível em https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/04/a-evolucao-do-karate.html

[2] No texto “A obra de Nakayama sensei (um clássico) está ultrapassada?”, disponível em https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/02/a-obra-de-nakayama-sensei-um-classico.html

[3] Pelo fato de não ter lido, ainda, a obra completa, o que pretendo fazer em breve, não posso saber quem é Matsumura.


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