A evolução do Karate. Pobre Karate-Do...

 A EVOLUÇÃO DO KARATE. POBRE KARATE-DO...

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 24/04/2021


Uma brincadeira com tom de tristeza que gosto de dizer quando me refiro ao Karate que temos hoje em dia é “pobre Karate-Do...”. É uma frase que tenho utilizado em conversas com meu amigo e sensei Rafael desde quando treinei com ele entre os anos de 2016 e 2018, e conversando com ele recentemente sobre nosso atual Karate, me senti inspirado a escrever um pouco.

Por que a frase “pobre Karate-Do...”? Você que é praticante de Karate deve fazer uma ideia do motivo, não? Você não acha que o Karate é uma arte marcial empobrecida? Este que escreve acha. Bem, dizem que o Karate passou por uma grande evolução nas últimas décadas, assim, ele não deveria estar – principalmente por mim, um simples, desconhecido e inexpressivo praticante – sendo considerado algo empobrecido. Que importância tem a minha opinião, não é mesmo?

Como já afirmei em outro texto, eu utilizo dois termos: Karate e Karate-Do. O primeiro para me referir ao Karate de maneira abrangente, sem distinção, o segundo para me referir ao Karate de uma forma mais restrita, no seu significado mais filosófico (a ideia de caminho/Budo). A partir daí já podemos fazer uma delimitação em relação a que Karate eu considero empobrecido (o Karate-Do).

O Karate-Do, como todos aqui devemos saber, foi originado numa forma de defesa pessoal desenvolvida no arquipélago de Okinawa/Ryukiu, com grande influência da China e que posteriormente foi levado para o Japão e de lá foi expandido para o mundo. Tomou, então, a forma que conhecemos hoje em dia.

Essa arte marcial foi elaborada de forma não muito organizada nas citadas ilhas, num movimento espontâneo de auto defesa e de absorção de aspectos da cultura chinesa, recebendo a colaboração de pessoas com reconhecido e elevado conhecimento cultural e intelectual, e esse conhecimento se refletiu na elaboração dos princípios norteadores dessa arte. Personagens como o próprio Gichin Funakoshi e seus professores, homens respeitados além de pelo domínio das artes marciais, pela capacidade intelectual, por serem conhecedores de confucionismo, literatura clássica chinesa, budismo, outros conhecedores de xintoísmo e aí por diante – Funakoshi em seu livro Karate-do, o meu modo de vida (FUNAKOSHI, KARATE-DO, O meu Modo de Vida, 2010) fala da capacidade de seu professor Yasutsune Asato de análise da situação geopolítica de sua época, prevendo cenários internacionais anos antes de os fatos se concretizarem -, contribuíram com os primórdios do que veio a ser o Karate-Do. A inclusão da partícula “Do” no nome da arte marcial é um capítulo que merece atenção especial, mas diremos aqui apenas que ela representa o que foi introduzido no Karate após sua entrada no Japão.

Fonte: http://judotradicionalgoshinjutsukan.blogspot.com/2008/08/importncia-do-treino-com-makiwara.html 


Portanto, o Karate-Do foi moldado como uma arte marcial que tinha grande bagagem filosófica – leiam-se seus lemas, o Dojo-Kun e o Niju-Kun (NAKAZONE, 2005) que tem muito da religiosidade oriental – e multicultural, devendo servir, acima de tudo, para a formação de pessoas socialmente úteis e intelectual e espiritualmente elevadas, por meio de uma prática ascética e austera, ou seja, foi moldado para ser uma arte marcial que se encaixasse nos ditames do Budo. Mas com o tempo e com dinheiro, tudo muda, muita coisa se perde, empobrece.

O Karate-Do, até mesmo como uma das exigências ou, pelo menos, como um dos caminhos para se encaixar no que preconiza o Budo, passou a ser praticado nas escolas e a ser um esporte de competição. A partir daí, foi novamente moldado, agora para atender às regras dessas competições e, então, passou a ser cada vez mais podado e restringido em suas técnicas de autodefesa e – aí entramos no nosso assunto – empobrecido filosófica, cultural, artística e tecnicamente. Onde há a busca por fama, dinheiro, status de criador de estilos e escolas, vitórias passageiras como um vento, por ser dono de entidades esportivas, etc, etc, não se lava em conta a tal “essência” das coisas, só o lucro e a visibilidade. Note-se que aí há também uma desvirtuação do próprio Budo[1].

Não quero dizer que o esporte seja necessariamente um desviante no caminho do Budo, uma vez que a prática de esportes pode, de alguma forma, ser um caminho para se atingir os objetivos dessa filosofia, mas o Karate-Do, ao enveredar pelos caminhos das entidades esportivas dominadas pelo dinheiro, não foi capaz de preservar seus fundamentos e se entregou a práticas que o afastaram do Budo.

Mesmo as entidades que se dizem tradicionais – e são várias, cada uma se achando mais tradicional que a outra, seja lá o que seja isso -, com raras, desconhecidas, combatidas e controversas exceções, são, na verdade, entidades que buscam crescer em número de praticantes, em reconhecimento, confundindo Budo com o simples ato de vestir um uniforme de Karate e se exibir como se fosse um budoka e na crença de que seu Karate é o melhor, ou seja, egoísmo e egocentrismo fortíssimos (humildade zero, Budo zero).

Assim, muitos dos seus membros, tanto alunos como professores, não tem a humildade de considerar que “seu” Karate é somente mais um e não o verdadeiro ou o mais certo. Quantas escolas de Karate que não fazem parte dessas entidades tem um Karate muito mais fundamentado nas antigas filosofias em que foram criadas e que conseguem, de alguma forma, mantê-las vivas; Quantas tem um Karate que realmente ensina a seus praticantes a se defenderem e não a marcar pontos; Quantas realmente podem ser chamadas de tradicionais por serem, realmente, tradicionais, mas se encontram ainda lá em Okinawa, longe das luzes da fama? O mundo é grande e não estamos sós e nem somos seu centro.

Esse empobrecimento filosófico do Karate-Do não é aceito como verdade por muitos. Esses, quando entram em alguma discussão sobre o assunto, logo dizem que, na verdade, o Karate passa por uma evolução, ano após ano. Quando tenho a oportunidade de participar desse tipo de conversa e não são oportunidades raras, uma vez que é um assunto que dá muita audiência e que faço questão de não entrar mais nelas por conta do vazio das opiniões e da falta de conhecimento da história do Karate que elas expressam, eu pergunto: qual Karate está evoluindo?

Sim, inegavelmente existe um Karate em constante evolução, o Karate esportivo. Essa prática tem tido uma evolução tão grande, tão espetacular, que, na nossa opinião, ganhou vida própria e se apartou tanto do Karate como do Karate-Do, dessa forma, já não é mais nem um nem outro e deveria ter, inclusive, além de regras e objetivos próprios, um nome novo. Parafraseando Allan Kardec[2], coisa que já fiz outra vez por aqui: ora, para coisas novas, deve haver nomes novos, sob pena de as confundirem com as antigas.

Mesmo que esse “novo Karate” – vamos chamá-lo assim – caminhe com suas próprias pernas, tenha um nome novo e não precise mais daquilo que lhe deu origem, o antigo Karate-Do já sofreu o prejuízo e perdeu muito do que era antes, eis o tal empobrecimento a que nos referimos. Meu raciocínio está errado? A tal evolução do Karate não causou prejuízos ao próprio Karate? Ora, hoje em dia vemos muitos professores buscando fazer um resgate de coisas que se perderam no Karate-Do com o passar dos anos. Sobre isso gosto de perguntar: como se pode tentar resgatar algo que não se perdeu? Alguém pode apontar outro motivo para essa perda, se não a tal evolução do Karate?

O que será que aqueles professores lá de Okinawa que foram citados antes e que deram origem ao que veio a ser o Karate-Do diriam sobre essa evolução do Karate? Será que eles considerariam que algo se perdeu? Vejamos o que pensava Gichin Funakoshi sobre a situação do Karate em sua época:

Em consequência da desordem social que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial, o mundo do karatê se dispersou, bem como muitas outras coisas. Independentemente do declínio do nível técnico durante essa época, não posso negar que havia momentos em que eu me achava dolorosamente despontado ao me tornar ciente do estado espiritual quase irreconhecível para o qual o mundo do karatê havia se voltado, diferente do espírito que prevalecia no tempo em que apresentei pela primeira vez o karatê e comecei a ensinar. Embora alguns possam afirmar que essas mudanças são apenas o resultado natural da expansão do Karatê-do, é evidente que esse resultado não pode ser visto com alegria, mas sim com apreensão.

Portanto, é com um sentimento misto de alegria e compaixão que eu tenho estado atento e tentado promover o melhor rumo para a rota do mundo do karatê, e me vejo em desvantagem ao calcular a influência que ainda posso exercer contra o fluxo de uma corrente tão forte. De qualquer modo, estando agora perto dos 90 anos de idade, não sou eu o mais indicado para especular sobre o futuro. [...] Durante a escrita do novo livro, ao contrário do que sentia anteriormente, tenho me surpreendido com a profundidade do Karatê-do, a ponto de chegar algumas vezes a hesitar; em consequência, a escrita acabou se estendendo pelos últimos três anos. Contudo, tenho me conscientizado de que, se esses aspectos profundos do karatê não forem num certo nível estabelecidos agora, poderão acabar não sendo constituídos no futuro, e é com esse reconhecimento e com a máxima humildade que ofereço esta segunda edição.

Para meus alunos e para todos os que dedicam seu tempo ao karatê, permitam-me expressar a esperança de que compreendam meu mais profundo desejo neste trabalho e que vocês mesmos o complementem; e assim o objetivo desta obra terá sido atingido. (FUNAKOSHI, Karatê-Do Kyohan: o texto mestre, 2014)

Notemos que já em 1956 Gichin Funakoshi sensei se preocupava com a situação do Karate em decorrência das consequências da Segunda Guerra Mundial e também da sua expansão. Essa preocupação se dava porque ele percebia o “estado espiritual quase irreconhecível para o qual o mundo do karatê havia se voltado”, sendo essas mudanças “resultado natural da expansão do Karatê-do”, o que não deixava o sensei alegre.

Ele, então, se apressou, apesar da idade avançada, em tentar firmar os aspectos mais profundos do Karate, temendo que isso não fosse possível no futuro, diante dos rumos que ele percebia estarem sendo tomados. Ora, se Funakoshi se preocupava com a situação daquela época, imaginemos o que ele e os outros professores de então sentiriam na época atual, quando o Karate-Do é, para muitos, praticantes ou não do próprio Karate ou de outras lutas, “aquela luta onde as pessoas não podem se tocar”, conforme me perguntou um colega de trabalho há alguns anos? Imaginem meu constrangimento.

Decorre de toda essa situação que muitos praticantes – como este – não têm opção senão remar contra a maré. A presença de inúmeras academias de Karate prova que quantidade não é qualidade – pelo menos não a qualidade que buscam. Mesmo que procurem, é muito improvável encontrarem um professor que não esteja ligado a alguma entidade esportiva ou preso a uma e que como tal, tenha que seguir seus ditames, ensinando seus atletas a competir, até porque não aprenderam outra coisa. Mas como pode-se afirmar que há aí um empobrecimento? Até então, só fizemos afirmações com base em análise da história. Se isso não é válido, digamos o seguinte.

Bem, algo que nos parece atestar em certo nível o empobrecimento do Karate-Do é a falta de conhecimento dos próprios professores sobre o próprio Karate-Do, e aqui falo apenas do aspecto filosófico e não do técnico. Como assim?

Essa arte marcial, como dissemos, é – ou deveria ser – portadora de valores culturais tanto da China, uma vez que muito do Karate vem de lá, como das ilhas de Okinawa, como do Japão, pelos motivos que já citamos antes. Claro que esses valores não devem ser totalmente assimilados pelos ocidentais, mas devem, pelo menos, serem entendidos, conhecidos ou estudados.

O Karate-Do trás dentro da sua prática o costume de utilizar inúmeras palavras em Japonês. São contagens, comandos, nomes de kata, de golpes, de posições e várias outras aplicações que são feitas no idioma do Japão. É muito impressionante vermos a confusão e os erros que muitos professores fazem na utilização desses termos, tanto na pronúncia como na aplicação. Isso, na nossa opinião, expressa falta de conhecimento, empobrecimento cultural e filosófico.

Não que defendamos que os praticantes de Karate-Do se tornem especialistas na língua do Japão, mas achamos necessário que eles se interessem em entender as palavras que pronunciam em todos os treinos, pelo menos para falarem corretamente. Isso sim, acreditamos que deveria ser uma exigência na formação dos futuros faixas pretas.

É claro que somos conhecedores das dificuldades que surgem nessa busca por entender os termos do Karate-Do, exatamente por conta da dificuldade que o idioma Japonês – Nihongo[3], para ser mais preciso – nos impõe. Quando os primeiros japoneses chegaram ao Brasil deve ter havido uma imensa dificuldade para se comunicarem conosco, assim como os primeiros karateka. Apesar dessa dificuldade natural, sabemos que muitos praticantes de Karate se interessam em aprender um pouco sobre as coisas que falam durante os treinos. Esse interesse nos parece ser proporcional ao valor que os praticantes dão ao aspecto cultural do Karate. Na medida em que a prática do “novo Karate” se direciona praticamente apenas à busca por aprender técnicas de luta esportiva, essa busca antes citada vai sendo esquecida e vai perdendo sua importância para os praticantes de tal modalidade. Assim, como já expressamos, vão se perdendo os aspectos culturais, artísticos e filosóficos, sem falar nos marciais, o que é muito grave.

Essas conhecidas dificuldades, no entanto, devem ser consideradas coisas do passado, do século XX, pelo menos quando não havia livros, revistas e principalmente internet. Para muitos não havia sequer o conhecimento da existência do povo Japonês. Hoje em dia, porém, temos plenas condições de nos informarmos minimamente sobre essas coisas dentro da nossa própria casa. Para tanto, os professores deveriam exigir tais conhecimento dos alunos, repassando para eles o que sabem e cobrando aprofundamento. Mas, pobre Karate-Do....

Diante desta pequena – para nós – evidência, que está entre outros sintomas, reafirmamos o empobrecimento do Karate. Como o interesse por tais aspectos é cada vez menor, e quando existe é deficiente, secundário e dificultado, cresce em nós a sensação de que estamos presos aos ditames das grandes entidades que comandam o Karate. Ou praticamos o que nos oferecem, ou nada praticamos. Frente a essa escolha, só podemos buscar o que mais se aproxima do que buscamos e ir tentando nos adaptar. Como não somos influência alguma no mundo do Karate-Do, seguimos um caminho meio solitário, na esperança de um dia encontrar alguém que nos guie de forma mais independente e livre dos efeitos nocivos do tempo e do dinheiro sobre essa arte, já previstos por Funakoshi sensei.

Oss!

Obras Citadas

1. A importância do treino com a makiwara. (s.d.). Acesso em 25 de Abril de 2021, disponível em Goshinjutsukan. Judo tradicional. Seja independente ou morra.: http://judotradicionalgoshinjutsukan.blogspot.com/2008/08/importncia-do-treino-com-makiwara.html

2.    FUNAKOSHI, G. (2010). KARATE-DO, O meu Modo de Vida. São Paulo: Cultrix.

3.   FUNAKOSHI, G. (2014). Karatê-Do Kyohan: o texto mestre (1 ed.). (W. Bull, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.

4.    MITYE, C. (s.d.). Nihongo: Características do idioma dos japoneses. Acesso em 25 de Abril de 2021, disponível em Brasil Escola: https://brasilescola.uol.com.br/japao/nihongo-caracteristicas-idioma-dos-japoneses.htm

5.    NAKAZONE, G. F. (2005). Os vinte princípios fundamentais do karate: o legado espiritual do Mestre. (H. A. Monteiro, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.

 

 



[1] Há informações importantes sobre o que entendo ser o Budo no texto Karate-Budo. O que é isso? no endereço https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/03/karate-budo-o-que-e-isso.html

[2] Hippolyte Léon Denizard Rivail, pedagogo francês considerado o pai do Espiritismo.

[3] Um pouco de informação sobre o Nihongo: https://brasilescola.uol.com.br/japao/nihongo-caracteristicas-idioma-dos-japoneses.htm


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