Por que minha filha gosta de Karate-Do, mas quer treinar Muay Thai?

POR QUE MINHA FILHA GOSTA DE KARATE-DO, MAS QUER TREINAR MUAY THAI?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 08/10/2020

Texto atualizado em 10/02/2021

 

Algumas coisas nos surpreendem quando nos chegam, mesmo que as vejamos acontecer ao nosso redor, corriqueiramente.

Quem é pai ou mãe sabe que estamos sujeitos a essas situações com nossas filhas e filhos, pois eles têm livre arbítrio e hoje em dia, principalmente, as crianças e os adolescentes exercem essa possibilidade com muita intensidade. Quando menos esperamos eles nos contestam, nos afrontam, nos surpreendem. Isso sempre ocorreu, mas é cada vez mais forte. Não é à toa a expressão rebelde sem causa. Quem de nós não foi um?

Mas tem coisas que nos acontecem que, mesmo a gente sabendo que tem um motivo justo para acontecer, quando acontecem, nos fazem ficar surpresos pois achávamos que aquilo não iria acontecer conosco.

Bem, todos nós karateka sabemos que há no mundo do Karate um problema que é muito chato, mas real: sabemos que a eficiência do Karate como arte marcial tem sido posta em dúvida por muita gente, e não sem razão.

O Karate é sim uma arte marcial, apesar de muita gente acreditar que é apenas um esporte de luta com regras que limitam o contato entre os competidores de forma que se valorize a velocidade, a plasticidade dos movimentos, que se evitem as lesões que possam ocorrer durante a aplicação dos golpes, enfim, que se valorize o show de uma competição em que os atletas são tão rápidos e seus movimentos tão bonitos de se ver que muitas vezes parecem as coreografias que vemos nos filmes de artes marciais. Um amigo de trabalho, uma vez me perguntou, ao saber que eu praticava Karate, se isso era aquela luta em que um não pode tocar no outro. Fazendo uma comparação com algo que poderia se aproximar mais da realidade se os golpes fossem aplicados de forma livre, podemos citar outro espetáculo, o MMA. Porém, ali os praticantes de Karate não lutam Karate, mas um misto de artes marciais.

Essa forma como o Karate se apresenta para o grande público é fruto de transformações ocorridas há décadas durante a entrada dessa arte marcial no Japão. O Karate, ao contrário do que se pensa no senso comum, não é uma arte marcial japonesa, pelo menos em sua origem. Muitos contestam essa afirmação, porém, um pouco de leitura e mente aberta podem mudar essa opinião. Originado nas ilhas do reino de Ryukyu (Okinawa), sob forte influência das artes marciais vindas da China, o Karate foi introduzido no Japão por alguns professores vindos de Okinawa, sendo que o que atingiu maior êxito nessa empreitada foi Gichin Funakoshi, que é, por isso, considerado o pai do Karate moderno. Nessa entrada no Japão, a arte marcial okinawana precisou passar por modificações que acabaram por desvirtuar, ao longo dos anos, seu lado marcial, suas virtudes de técnica de defesa pessoal, passando a ser cada vez mais visto como um esporte de luta com regras.

Ao assumir essa nova configuração, o Karate tornou-se – e esse foi um dos objetivos das mudanças ocorridas –, um esporte escolar, se bem que seu lado marcial continuou sendo praticado e desenvolvido em outros países e mesmo no Japão, porém, sob as formas impostas por aquele país.

Falando sobre o pouco que conheço da realidade do Karate no Brasil, vejo que há, sim, karateka(s), que o praticam como arte de defesa pessoal, mas a maioria incontestável dos praticantes são competidores e conhecem e dominam as técnicas de luta competitiva atingindo grande habilidade, mas não conhecem o Karate como arte marcial. Praticam os kata apenas para competir e se qualificar nos exames de graduação, mas não conhecem as técnicas de defesa pessoal que estão ali “escondidas”. Praticam o kihon, mas por obrigação. Nas escolas o Karate vai se tornando cada vez mais um esporte utilizado para iniciar as crianças no mundo esportivo/competitivo e para desenvolver habilidades motoras e de socialização e que logo depois de alguns anos ou mesmo apenas meses de prática, abandonam os treinos dessa modalidade em busca de algo mais “legal”. Karate é chato. Tudo bem, coisas de crianças e de adolescentes que precisam experimentar coisas diferentes. Aí entram as comparações entre o Karate e outras artes marciais. Uma das que mais aparecem nessas comparações atualmente é o Muay Thai.

Não vou falar sobre o Muay Thai pois não conheço essa arte marcial. Sei apenas que seus golpes são poderosos se bem treinados – assim como o Karate - e que também sofre desvirtuação – também como o Karate, mas de uma forma diferente. Sei também que a arte marcial da Tailândia tem “roubado” praticantes do Karate.

Bem, sei que isso tem ocorrido por toda parte, mas dentro da minha casa?? Não, não sou eu quem quer mudar de time, é minha filha.



Ela percebeu que o Karate, da forma como é praticado (para competir), com inúmeras e exaustivas repetições de movimentos que parece que nunca vão preparar a pessoa para se defender pois as explicações dos movimentos são vagas, nunca vão prepara-la para se defender. Então, ela foi mais pragmática e escolheu praticar Muay Thai.

Ela já praticou Karate competitivo, já ganhou medalhas quando criança, parou de treinar e até tentou voltar, mas agora ela quer aprender a se defender e quer experimentar o Muay Thai.

Em resumo, esta visão que ela tem do Karate é a mesma de muitos praticantes: veem a arte nascida em Okinawa como uma coisa legal, cheia de uma tal filosofia de vida, uma prática bonita, mas para aprender a se defender, preferem praticar Muay Thai ou Jiu Jitsu.

Como diz sensei Juarez Alves, o Karate tem que ter os porradeiros!!!

Pois é, minha filha quer praticar Muay Thai. Ela não é uma rebelde sem causa.


O Karate-Do, de Okinawa à pandemia. O legado de Gichin Funakoshi.

O KARATE-DO, DE OKINAWA À PANDEMIA. O LEGADO DE GICHIN FUNAKOSHI.

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 08/06/2020

Texto atualizado em 15/02/2021

 

É claro, todos nós que praticamos Karate-Do[1], com raras exceções, sabemos que Gichin Funakoshi é considerado o pai do Karate moderno. Mas o que significa dizer que aquele homem singular é considerado o pai do Karate moderno? Por que ele tem essa consideração por parte dos Karateka mundo afora? O que ele fez? Por acaso inventou o Karate, ou o reinventou, já que o consideram o pai do Karate “moderno”, ou seja, se o Karate dele é o “moderno”, há um “não moderno” e ele o teria modificado? Bem, estou fazendo muitas perguntas e o leitor fica naquela expectativa de que ao final do texto elas sejam respondidas. Todas essas e muitas outras perguntas sobre esse grande sensei do Karate são fundamentais para conhece-lo melhor. Certamente que passaremos, de alguma forma, por informações que podem levar a, mesmo que de maneira não intencional ou indireta, responder algumas dessas perguntas e, me desculpem se não responde-las todas ao longo deste texto, pois as questões que gostaria de utilizar para fundamentar de maneira mais forte meu raciocínio giram em torno das dificuldades e superações vividas pelo sensei durante sua vida a partir da ida para o Japão propriamente dito, com a missão de divulgar a arte de autodefesa autóctone de Okinawa e de como o conhecimento dessa história de vida pode nos ajudar hoje em dia a superar as atuais dificuldades globais, frente à pandemia que enfrentamos. De qualquer forma, algumas das questões que já levantei acima e outras que podem delas decorrer, podem servir para buscarmos outras pesquisas com outros focos sobre a vida de Funakoshi ou mesmo sobre o Karate, de forma geral. O que nos ensina para a atualidade Funakoshi sensei com sua vida? É por aí que pretendemos caminhar por meio deste pequeno texto.

Sabemos que ele foi o grande responsável pela divulgação do Karate no Japão e, a partir daí, a arte se espalhou para o mundo. Essa divulgação, como veremos mais a diante, foi feita a convite dos órgãos ligados à educação e aos esportes, tanto em Okinawa como no Japão, passando pela – digamos assim – intermediação da Marinha japonesa.

Para poucos, imaginamos, seria possível influenciar de alguma forma essas entidades, de modo que as mesmas se vissem diante de algo tão diferente que merecesse sua atenção. É preciso, além de estar no lugar certo e na hora certa, ter as condições em si mesmo para tanto, condições e qualidades como o domínio daquilo que representa e até mesmo, carisma.

Certamente Funakoshi tinha esse domínio sobre o Karate, já que treinava já havia um tempo considerável com os dois maiores professores dessa arte em Okinawa, Yasutsune Azato e Anko Itosu e sob o incentivo deles, também tinha aulas com grandes professores de outras escolas de Karate. Por outro lado, sabemos como é importante o carisma de uma pessoa - e acreditamos que Funakoshi era carismático - para que ela faça valer suas ideias em qualquer campo e que, às vezes, mesmo não sendo essa pessoa especialista no assunto a que se joga, consegue, por esse carisma, sucesso muito considerável, o que afirmamos não acreditar ser o caso de Funakoshi em relação ao Karate, apesar de haver pessoas que insistem em frisar que não há registro de grandes feitos do sensei em relação à arte que representava, como um desafio vencido, por exemplo. Mas vencer desafios de Karate ou quebrar objetos com os punhos, por exemplo, não é, na nossa opinião, um requisito incontestável nem tampouco indispensável para atestar o domínio do Karate.

Acreditamos que somente o fato de Okinawa, em acordo com o Japão e com a concordância dos professores de Funakoshi, terem organizado os eventos de demonstração do Karate fora de Okinawa - e, lembremos que, quando realizados na ilha, já foram feitos para grandes autoridades – sob a responsabilidade dele, já mostram que ele tinha grande domínio sobre a arte.

Funakoshi, certamente por ter uma formação intelectual considerável, sendo considerado erudito em literatura chinesa, por ser professor, gozando de grande credibilidade, por ser alguém carismático, acreditamos, uma vez que alguém sem um certo magnetismo pessoal não chegaria muito longe na empreitada que o sensei enfrentaria, e por ser um praticante de Karate desde a adolescência, reunia as condições para se tornar um representante da arte marcial okinawana diante do Japão. A oportunidade para a concretização dessa representação ocorreu em 1921, conforme relata (Funakoshi, 2010):

A prefeitura de Okinawa foi convidada a participar da demonstração, e o Departamento de Educação me pediu para apresentar nossa arte local de karatê à capital japonesa. Concordei imediatamente, claro, e comecei a fazer planos.

Conforme (Funakoshi, 2010), no primeiro ou no segundo ano do século passado (Século XX), foi realizada uma visita pelo inspetor escolar Shintarô Ogawa, da prefeitura de Kagoshima, à escola em que ele, Funakoshi, lecionava. O inspetor assistiu a uma apresentação de Karate que o impressionou bastante, e no relatório apresentado em relação a essa visita, ele fez elogios ao que viu, resultando daí, que o Karate “passou a fazer parte do currículo da Escola Secundária da Prefeitura de Daiichi e da Escola Normal para Homens”. Isso era, como indica o título do capítulo em que o sensei faz esses relatos, “O fim da clandestinidade”. Não havia mais a necessidade de o Karate ser praticado às escondidas. Funakoshi, então, passou a se dedicar cada vez mais à sua amada arte marcial.

Posteriormente, um almirante chamado Rokuró Yashiro, que estava com seu navio ancorado em local próximo, assistiu a uma apresentação de Karate e, por ter lhe causado admiração, determinou que os homens sob seu comando assistissem e iniciassem a prática do Karate. Mais adiante, em 1912, o almirante Dewa, que comandava a Primeira Esquadra Imperial da Marinha, ancorado em Chújo, juntamente com doze membros da tripulação, nas palavras de (Funakoshi, 2010), “permaneceram durante uma semana no dormitório da Escola Secundária de Daiichi para observar e praticar karatê”.

Já em 1921, ocorreu, sob responsabilidade de Funakoshi sensei, no Castelo de Shuri, uma apresentação de Karate durante uma escala de uma viagem à Europa realizada pelo príncipe herdeiro. A apresentação impressionou bastante o príncipe.

Após essa apresentação, ocorreu o convite para apresentar o Karate no Japão, que citamos na transcrição acima.

Uma das dificuldades enfrentadas pelo sensei em Tóquio foi a famosa necessidade de mudar aspectos do Karate trazido de Okinawa, dentre esses, as nomenclaturas.

Uma das passagens mais conhecidas da vida de Funakoshi em prol do Karate no Japão, é o que se conta sobre a necessidade de mudar o caractere kara que significa “chinesa”, segundo alguns afirmam e, segundo outros, acreditamos que com mais razão, “Tang”, numa referência à dinastia chinesa com esse nome, para o caractere kara que significa “vazio”. Dessa forma, karate mudaria o seu significado de mãos de Tang para mãos vazias. Sabe-se, por ouvir falar e até por leituras, que essa mudança foi feita por imposição de entidades japonesas ligadas ao controle das artes marciais, sendo a mais importante a Dai Nippon Butokukai. Porém, numa leitura um pouco mais atenta de (Funakoshi, 2010), infere-se que a mudança dos termos ocorreu, segundo o autor do livro, também por um entendimento particular e insistência dele de que o termo kara com significado de “chinesa” não era o mais apropriado, e um dos motivos é que não havia, pelo menos que fosse do conhecimento dele, registro de que o kara utilizado em Okinawa era o que tinha significado de "chinesa" ou Tang ou se o com significado de “vazio”, mas que, acreditava ele, pelo fato da grande influência que a China exercia sobre a ilha, o termo com significado de "chinesa" ou Tang tornou-se mais popular, porém, segundo ele mesmo, isso “pode ser apenas um mero jogo de adivinhação”.

Outro motivo para a insistência de Funakoshi para a mudança do termo kara (chinesa) para o kara (vazio) é que por o termo com significado de "chinesa" ou Tang ter se tornado mais popular, passou-se a acreditar que a arte marcial praticada em Okinawa era uma variação da arte do boxe chinês, mesmo que, como afirmou ele, “de fato, o karatê como praticado hoje é muito diferente da antiga arte chinesa do boxe”. Portanto, temos aí, segundo o próprio Funakoshi, os motivos que o levaram a propor as mudanças nesses termos. Curioso observar isso, porque quando vemos alguns dos movimentos do Karate, notamos semelhanças com os das artes marciais chinesas e logo fazemos a associação com a influência cultural da China sobre Okinawa, o que é incontestável. Mas, ao mesmo tempo, vemos que a arte de defesa desenvolvida em Okinawa, mesmo tendo inegáveis influências chinesas – e o bom senso não nos deixa raciocinar de outra forma -, realmente parece algo que, com o tempo, ganhou autonomia e se tornou algo mais okinawano que chinês. Assim, talvez se explique essa opinião tão forte de Funakoshi que o levou a insistir na mudança do termo kara com significado de "chinesa" ou Tang para o kara com significado de vazio, ou seja, ele via o Karate como uma representação da cultura de Okinawa, mesmo tendo a consciência de que ela descendeu da China, e achava que essa associação muito forte à China não era boa. Este que escreve, portanto, conclui que as imposições da Dai Nippon Butokukai não foram o único motivo que impulsionou as mudanças, pois na explicação de Funakoshi fica expressa sua visão particular sobre a questão, sendo um forte motivo que o levou a propor tal mudança.

Assim, parece que estamos nos encaminhando para responder porque Funakoshi é considerado o pai do Karate moderno, porém, essa resposta deve ser muito mais ampla e abrangente. O pai do Karate moderno fez muito mais do que somente apresentar a arte ao Japão e sugerir a mudança dos termos de sua nomenclatura. Há mudanças em alguns kata, por exemplo, que são atribuídas a ele e – salvo engano – a seu filho, Gigo Funakoshi, que influenciaram para sempre o Karate. Esse, porém, é um assunto muito mais abrangente e que não cabe neste momento.

Como vimos nesse breve resumo de alguns dos momentos importantes da vida do sensei de Okinawa, o caminho não foi fácil. Provavelmente, ter que lidar com autoridades japonesas, sendo apenas um professor de uma ilha sob domínio dessas autoridades, não foi tarefa simples. E estamos, até agora, perpassando de forma não completa por algumas das descrições conhecidas da vida dele que não focam nas dificuldades enfrentadas. Na obra por ele escrita, Karatê-Dó, O meu Modo de Vida, há relatos de momentos de grande tormenta enfrentados por ele no Japão, um país que seria destroçado pela guerra e por fenômenos da natureza arrasadores.

A seguir, transcrevemos parte do capítulo da obra já referenciada de Funakoshi, no seu capítulo “Reconhecimento”:

Assim, mais uma vez adiei minha partida e comecei a dar aulas a membros de um grupo de pintores chamado Clube do Choupo de Tabata, do qual Kosugi era presidente. Depois de algumas sessões, comecei a compreender que se quisesse ver o Karatê-dô apresentado a toda a população japonesa, eu era a pessoa indicada para isso, e Tóquio era o lugar por onde começar. Imediatamente escrevi para Azato e Itosu comunicando-lhes minha ideia, e ambos me responderam com cartas de incentivo, advertindo-me ao mesmo tempo que enfrentaria tempos difíceis.

Quanto a isso, pelo modo como as coisas evoluíram, eles estavam mais do que certos. Mudei-me para Meisei Juku, um dormitório para estudantes oriundos de Okinawa (localizado na área Suidobata de Tóquio), onde me foi permitido usar o salão de palestras como meu dojo temporário quando não estava sendo utilizado pelos estudantes. O dinheiro, no entanto, era um problema crítico: eu não tinha nada, minha família em Okinawa não tinha condições de me enviar nada, e não podia, na ocasião, atrair nenhum patrocinador, pois o karatê ainda era praticamente desconhecido.

Para pagar pelo cubículo onde dormia, assumi todos os tipos de trabalhos avulsos do dormitório: guarda, zelador, jardineiro, faxineiro. Naquele tempo, eu tinha muito poucos alunos, e por isso o que recebia mal dava para as despesas mais essenciais. Para ajudar a resolver o problema da falta de dinheiro para comer, convenci o cozinheiro do dormitório a participar das aulas de karatê; em contrapartida, ele me dava um desconto mensal pelo que lhe devia em comida. Foi uma vida difícil, mas quando me lembro desse tempo depois de todos esses anos, me dou conta de que também era uma vida boa.

[...]

Assim, para meus alunos eu era o especialista em karatê; para a família Matsudaira era apenas um velho varredor, e para o bando de crianças que brincavam no jardim era um melão. Achei tudo isto muito divertido; o que achava menos divertido eram os dias de penúria em que não conseguira dinheiro suficiente para comprar o necessário para a sobrevivência. Certo dia, achei que precisaria empenhar uma coisa ou outra, mas a questão era o quê. Eu praticamente não tinha nada que desse para empenhar. Finalmente encontrei um velho chapéu-de-coco que havia usado em Okinawa e um quimono de Okinawa feito a mão. Embrulhei essas coisas com cuidado e dirigi-me até uma loja de penhores distante, pois não queria que nenhum estudante do dormitório ficasse sabendo da situação.

A bem da verdade, eu tinha vergonha até de mostrar os dois objetos ao balconista da loja de penhores, pois ambos eram velhos e gastos e, receava, sem valor. Mas o balconista levou essas coisas para uma sala nos fundos, onde podia ouvir dois homens (o outro, supostamente o proprietário da loja) falando aos sussurros. Depois de alguns momentos o balconista reapareceu e me entregou uma quantia de dinheiro assustadoramente grande.

Fiquei perplexo ao saber, mais tarde, que o irmão mais novo do balconista era um dos meus alunos de karatê. De fato, agora que penso nesses anos passados, relembro um número considerável de bondosos benfeitores, entre eles Hõan Kosugi e os outros pintores do Clube do Choupou de Tabata, e por todos eles tenho um permanente sentimento de gratidão.

Mais a diante, no capítulo “Uma vida”, Funakoshi relata algumas das vidas perdidas durante sua difícil missão no Japão:

Sensei”, ouvia com frequência um jovem dizer ao mesmo tempo que se ajoelhava diante de mim, “fui convocado e devo partir para servir a meu país e a meu imperador”. Todos os dias podia ouvir meus alunos, muitas vezes mais do que um, dirigir a mim palavras desse teor. Eles tinham praticado karatê exaustivamente, dia após dia, como preparação para encontros corpo a corpo com um inimigo perigoso, e achavam que estavam preparados. De fato, ouvi dizer que alguns oficiais instruíram seus homens a atacarem o inimigo com golpes de mãos, se não fossem capazes de carregar um rifle ou uma espada. Isto veio a ser conhecido como “ataque de karatê.

Naturalmente, muitos alunos meus morreram em batalha – tantos, infelizmente, que perdi a conta. Eu sentia que o meu coração explodiria ao receber tantas comunicações dando-me conta das mortes de tantos jovens promissores. Então ficava sozinho no dojo silencioso e oferecia uma oração pela alma do morto, relembrando os dias em que ele havia praticado karatê com irrepreensível dedicação.

E, sem dúvida, como muitas outras, minha família e eu sofremos nossa parcela de desgraças pessoais, desgraças essas que se intensificaram à medida que se tornou evidente que a Guerra do Pacífico terminaria com a derrota do Japão. Quando, na primavera de 1945, meu terceiro filho, Gigo, adoeceu e teve de ser hospitalizado, mudei-me com meu filho mais velho pra Koishikawa. Durante minha estada lá, meu dojo foi destruído por um ataque aéreo.

Pensei em como fora construído com amor e generosidade por amigos do Karatê-dô. Ele era uma cristalização de sua devoção pela arte, e era para mim a coisa mais maravilhosa que jamais realizara na vida. Agora, de um momento para outro, estava arrasado.

Pouco tempo depois, houve uma catástrofe ainda maior a suportar: o imperador assinou o decreto de rendição. O caos da vida em Tóquio após essa assinatura foi mais do que eu podia suportar, e assim me desloquei a Oita, em Kyushu, para onde minha mulher havia fugido quando começou a violenta batalha pela conquista de Okinawa. Pelo menos, pensei, poderia viver sossegado com ela, e teria melhores condições para obter o suficiente para comer, o que seria difícil de acontecer na metrópole assediada pela fome.

Mas a vida em Kyushu não era bem o que eu havia antecipado. Por um lado, tinha havido uma evacuação em massa de Okinawa para Oita, e nem minha mulher nem eu tínhamos qualquer parente entre a multidão de refugiados. E nem havia muito para se comer: uns poucos vegetais que plantávamos nós mesmos e plantas marinhas que recolhíamos na praia. Minha mulher, embora já de idade, mantinha seu espírito inquebrantável – mas não por muito tempo, para minha profunda tristeza.

Certo dia, inesperadamente, ela caiu doente. Ela sempre havia sofrido de asma, e por esse tempo a doença se tornara tão grave que mal conseguia respirar”. [...], ofereceu sua derradeira oração aos espíritos ancestrais antes de ela mesma juntar-se a eles.

 


Navios americanos desembarcando tropas nas praias de Okinawa.

Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/guerras/batalha-okinawa.htm

Vimos acima, um pouco do muito que o sensei de Okinawa enfrentou. Certamente, o que ele escreveu no seu livro não é nem próximo de tudo o que ele realmente vivenciou no Japão, mas nos dá alguma ideia do que ocorreu: batalhar em um país que não era o dele, advindo de uma etnia discriminada como era a de Okinawa numa época de transição política, convulsão social e guerra, para demonstrar e divulgar uma forma de arte marcial; conseguir pela ajuda dos alunos e amigos a construção de um dojo e, mais tarde, em 1945, ver esse sonho realizado destruído pelos bombardeios de uma guerra que não era sua; passar momentos de dificuldades para obter alimento sem ter dinheiro; vivenciar a morte de vários de seus alunos na guerra, depois, passar pela do seu próprio filho e posteriormente a da sua esposa, são situações muito pesadas para qualquer um. Mas sabemos – mais uma vez, de ouvir falar ou de leituras ocasionais - que no momento do reerguimento e da tentativa de retornar à normalidade, Funakoshi teve a ajuda e o incentivo dos seus amigos e alunos.

Funakoshi relata que “foi pelo ano de 1935 que um comitê nacional de patrocinadores de karatê solicitou fundos suficientes para o primeiro dojo a ser erguido no Japão”. O dojo ficou pronto em 1936 e recebeu o famoso e, de certa forma misterioso nome, Shotokan. Nos parece muito razoável considerar que a iniciativa da construção do dojo – apesar de ter sido providenciada por um “comitê nacional de patrocinadores de karatê”, conforme (Funakoshi, 2010), dando a impressão de ter sido uma iniciativa de uma entidade de pessoas (empresários) visando lucros, teve a participação de amigos e alunos, pois ele cita um certo Chosuke Ie, um barão de Shuri, sua cidade natal, que sabia da existência do pseudônimo Shoto que ele (Funakoshi) utilizava em seus poemas e, ao que parece, foi quem sugeriu esse nome para o dojo, e que tornou-se seu patrono em Tóquio, ou seja, um conhecido da sua terra natal estava entre os responsáveis pela construção do dojo Shotokan e isso é indício de que outros conhecidos entre amigos, alunos e admiradores, faziam parte também.

O terremoto de 1923, um grandioso desastre que Funakoshi não detalha no seu livro, citando rapidamente a ocorrência do fenômeno, mas que arrasou grande parte do Japão com cenas terríveis, bastando uma rápida pesquisa na internet para se ter uma ideia mais aproximada do que a trazida no relato do sensei, foi, como a atual pandemia, um fenômeno da natureza que abalou a sociedade. Claro, a pandemia que vivemos ocorre em nível mundial, mas no caso do terremoto, também foram levadas milhares de vidas da noite para o dia. As aulas de Karate-Do precisaram ser paralisadas para se cuidar da sobrevivência e ajudar os mais fracos, como ocorre hoje, para a manutenção da saúde de todos.

Após a tragédia do terremoto, como relata (Funakoshi, 2010), com o passar dos meses a vida ia se reorganizando. Os Karateka notaram que o antigo dojo estava praticamente imprestável e Funakoshi passou a dar aulas num dojo de esgrima, mas com o passar do tempo e o aumento dos alunos tanto de Karate-Do como de esgrima, o espaço ficou insuficiente. Então, foi providenciada a construção do dojo Shotokan, como relatado anteriormente.

É razoável, acreditamos, que ele viu no Karate-Do sua tábua de salvação em meio ao caos e à falta de alternativas para prover a própria subsistência. Da mesma forma, cremos que ele se tornou o símbolo do amor pelo caminho das mãos vazias e consequentemente o alvo da solidariedade já relatada dos alunos e amigos e levou sua missão de divulgação do Karate-Do até enquanto teve forças para tanto.

Mas, voltando à pergunta inicial, “o que nos ensina para a atualidade Funakoshi sensei com sua vida?”, temos muito a ser dito. Talvez nossas reflexões a esse respeito não sejam tão boas e não tragam tantas possibilidades, deixando de fora aspectos importantes da vida do sensei que possam nos servir de lição para hoje. Mas diríamos que na atual situação, cada um de nós tem que se apegar em algo para atravessar a tormenta e como temos o Karate-Do, não podemos despreza-lo.

São notórias as dificuldades enfrentadas atualmente pelos sensei ao redor do mundo, principalmente aqueles que vivem das aulas e dos campeonatos de Karate. A repentina proibição das atividades coletivas objetivando a prevenção da contaminação esvaziou, da noite para o dia (literalmente), os dojo e os keikojo, deixando em grande dificuldade os professores de Karate, em suas variadas formas, linhagens e escolas. Por outro lado, os alunos também estão em situação difícil. Os que praticam o Karate-Do como uma forma de aperfeiçoamento e alívio mental, além do aspecto físico, ficaram de repente, sem seus orientadores e sua prática tão salutar à saúde mental, quando bem orientada pelos sensei, foi bruscamente interrompida. Há também os que praticam o Karate como esporte de competição e que atingem altos níveis de preparação física, objetivando os eventos que chegam a níveis altíssimos de performance técnica, sendo disputados em nível mundial, valendo considerar que essa preparação tinha, por muitos – ou, melhor dizendo, pelos poucos que conseguiram uma vaga – o objetivo máximo da vida de um atleta, que era a participação em uma olimpíada. É, sem dúvidas, um tempo difícil para os que ensinam e para os que aprendem.

Há uma relação dos acontecimentos vivenciados pelo pai do Karate moderno com a situação porque passam os Karateka da atualidade.

Certamente que a situação é muito diferente. Na época de Funakoshi sensei havia uma situação de destruição e desesperança generalizada. Hoje em dia, porém, podemos visualizar uma situação muito difícil, mas que guarda grandes reservas de esperança e, inclusive, no olhar de muitos, uma expectativa de que, após todo o problema na área da saúde, da economia e da política, grandes progressos virão. Não estamos em guerra militar, mas sim numa guerra contra uma doença e, assim como uma guerra bélica, essa situação trará, certamente, lições para a humanidade, assim como ocorreu no tempo de Funakoshi, no Japão. O Karate-Do era, naquela época, uma arte que buscava seu lugar num país fechado, que impunha suas condições para sua aceitação, ou seja, o sensei de Okinawa precisou adaptar sua arte aos ditames japoneses para poder vê-la florescer. Hoje em dia, o Karate-Do, graças ao legado de Funakoshi, tem seu espaço respeitado no mundo todo, e os sensei modernos já não tem as mesmas dificuldades que Gichin Funakoshi enfrentou – claro que dificuldades há, mas são outras.

a situação provocada pela II Guerra Mundial já era um obstáculo grandioso para Funakoshi e todo o povo por ela atingido. As consequências de uma guerra e de um bombardeio nuclear são eventos dificilmente superados. Mas hoje em dia, guardadas as devidas proporções, temos uma situação que provoca grandes dificuldades para os Karateka, como foi colocado acima, tanto para alunos como para professores. Um aspecto que chama muito a atenção quanto à realidade vivida por Funakoshi, é que ele se viu em grandes dificuldades e foi alvo da solidariedade daqueles que tiveram despertado em si o sentimento da gratidão ao professor. Na atualidade, os sensei passam por grandes dificuldades, porém, será que há o sentimento de gratidão que abraçou Funakoshi, por parte dos seus alunos? Só eles, os sensei, para responder.

A modernidade trouxe, cada vez mais, ano após ano, a possibilidade de os alunos treinarem Karate em casa. Os recursos tecnológicos praticamente põem vários professores à disposição do aluno na própria casa dele. Isso pode ser uma faca de dois gumes para o sensei. Ao mesmo tempo em que ele pode alcançar uma imensa quantidade de espectadores e admiradores ao utilizar os recursos da internet, nem sempre – ou quase nunca – são verdadeiros alunos, mas apenas espectadores e admiradores. Não se cria aí o vínculo do aluno com o professor como se criaria no dojo e quando se cria um laço, ele é muito solto, muito frouxo, apesar da impressão de proximidade entre os dois atores dessa situação, a distância é grande.

Ter um professor à disposição na casa do aluno, com a possibilidade de utilizar da forma que quiser e na hora que quiser aquele conhecimento e, de graça, faz do sensei apenas um criador de conteúdo e conhecimento que, para ele, dificilmente trará alguma segurança em termos de poder viver daquilo, e numa situação como a atual, em que eles precisam da gratidão nos moldes da que atingiu Funakoshi, para onde ela foi?

Vemos que muitos dos próprios sensei incentivam a prática do Karate em casa. Claro que os mais responsáveis salientam as dificuldades de não se ter a orientação e as correções ao vivo, mas parece que há uma dificuldade de fazer entender que o sensei tanto é imprescindível nesse aprendizado como que ele precisa que o aluno paguei pelas aulas. Enfim, esse é um problema que, certamente, Funakoshi não enfrentou. Claro que não podemos deixar de considerar aqui que há sensei que tem sucesso nas suas práticas de Karate pela internet, mas acredito que são uma parcela pequena deles, pois a internet é um ambiente em que só paga pelo conteúdo quem quer, uma vez que ali tudo está ao alcance dos dedos.

Vemos que há sensei que, a exemplo de Funakoshi, conseguem manter seus alunos por perto, mesmo num momento de extrema dificuldade de se manter o contato – pelo menos o físico – e que sabem que após todo o cenário difícil, ou mesmo durante a dificuldade, eles vão voltar.

Assim, acreditando que o legado de Gichin Funakoshi é algo que atravessa décadas, já tendo se passado mais de um século desde o início dos esforços dele para a divulgação da arte de Okinawa, e que suporta as pancadas do tempo – que irônico, o Karate-Do tendo que suportar pancadas -, da modernidade, da chamada evolução do Karate - uma expressão que pode ser contestada - entre outras dificuldades, temos que fazer dele (esse legado) não somente uma historinha bonita de um senhor que saiu de uma ilha e “conquistou o mundo” passando a ser conhecido como o pai do Karate moderno, mas sim algo visível, praticável, mantendo viva a relação sensei/senpai/kohai, não apenas pela internet, mas no lugar de prática do Caminho, o dojo, assim que as circunstâncias permitirem, e, para os que puderem, mesmo à distância, manter acesa a chama que aquece a água da nossa arte marcial.

Oss!

Bibliografia

Fernandes, C. (09 de 02 de 2021). Fonte: Brasil Escola: https://brasilescola.uol.com.br/guerras/batalha-okinawa.htm

Funakoshi, G. (2010). Karatê-do: o meu modo de vida. São Paulo: Cultrix.

 



[1] Convém informar sobre as palavras de origem japonesa ou okinawana aqui utilizadas que:

1.   A expressão ou palavra “Karate-Do” será utilizada para referir-se especificamente à forma japonesa de Karate, enquanto que a expressão ou palavra “Karate”, para que seja feita uma distinção, será utilizada para se referir ao Karate não japonês.

2. Por não ter certeza sobre se o uso das palavras de origem japonesa ou okinawana já está ou não “aportuguesado”, escreverei as mesmas utilizando o itálico, menos nos nomes de pessoas e de lugares pois, sendo nomes próprios, creio não seja necessário.


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