O que praticar da cultura japonesa contida no Karate-Do?

 O QUE PRATICAR DA CULTURA JAPONESA CONTIDA NO KARATE-DO?

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 08/07/2023

A partir de conversas informais com colegas de prática do Karate-Do e de informações a respeito do que pensa Juarez Alves sensei, passamos a refletir a respeito do que praticar da cultura japonesa contida no Karate-Do. É possível a nós brasileiros inserir nas nossas “formas de vida” coisas da cultura japonesa? É necessário fazer isso para que alguém possa se considerar karateka? Um grande karateka como Juarez Alves defende que as barreiras culturais são o principal problema para tanto e afirma não ter a intenção de copiar tal cultura estrangeira, mas, será que ele mesmo não o faz, pelo menos à maneira dele?

Conforme já afirmamos em (SILVA, 2022), Karate-Do é uma representação da cultura japonesa em território brasileiro. A partir dessa constatação passamos a pensar sobre a influência daquela cultura sobre a nossa. Seguindo por esse caminho, inevitavelmente vamos chegar à conclusão de que a partir do momento em que duas culturas se tocam, ocorre uma mistura, e nenhuma das duas se manterá intacta frente à outra. Sobre isso, creio, não há controvérsia. Porém, nossa reflexão neste momento se faz a respeito da questão de como nos posicionar diante dos traços culturais japoneses trazidos até nós por meio da prática do Karate-Do. Devemos nos esforçar para, de alguma forma, pôr em execução em nossas vidas algo das formas de vida japonesas? E isso é possível?

A opinião de Juarez Alves, um dos mais longevos e respeitados karateka do nosso país, é muito relevante. Nós, meros iniciantes na prática de uma arte tão complexa como é o Karate-Do, geralmente não temos a capacidade de compreender de imediato afirmações de alguém como ele que tem décadas de prática praticamente diária do Caminho das Mãos Vazias. Certamente a reflexão que fazemos agora é algo já mastigado e digerido em sua mente de karateka há muito tempo e deve, de vez em quando, voltar a ser tema de seus pensamentos e, com a experiência dificilmente alcançável que tem, o sensei já formulou seu entendimento a respeito.

O Dojo Kun e o Budo

Em recente entrevista (ALVES, 2023), Alves sensei foi solicitado a responder a respeito do Dojo Kun e do Budo, momento em que ele entrou no assunto aqui abordado, ou seja, a possibilidade de se praticar, no Brasil, os aspectos culturais do Karate-Do. Nos chamou a atenção a tranquilidade e segurança das colocações dele, coisa só possível a quem transformou o Karate-Do em um verdadeiro modo de vida.

A respeito do Dojo Kun, afirmou que a diferença de culturas entre brasileiros e japoneses é um obstáculo à sua prática. Também afirmou que essa diferença de culturas dificulta muito a compreensão dos ocidentais a respeito de outro conceito importante, o Budo, e que para o próprio japonês moderno essa compreensão sobre o Budo é difícil. Sobre Budo, o sensei afirmou: “Não tenho muito o que falar do Budo porque não conheço muito essa área aí…”, mas, nos perguntamos: será que ele não pratica tanto os princípios do Dojo Kun como os do Budo, de alguma forma? Acredito que o sensei me daria razão se eu dissesse a ele: sensei, tem coisas que, mesmo não conhecendo, a gente pratica, às vezes melhor do que alguém que, sem nenhuma modéstia, afirma conhecer.

Podemos inferir, a partir de alguns de seus comentários que, mesmo que não seja sua intenção ser um brasileiro “ajaponesado”, e de não procurar imitá-los, o sensei põe em prática o Dojo Kun por meio da sua dedicação incansável ao Karate-Do. Cometendo os erros que quase todos cometemos e buscando a mudança de uma forma que poucos de nós buscamos (por meio da prática do Karate-Do), cremos que ele pratica, sim, o Dojo Kun, e ainda mais, o Budo que é, no final das contas, uma busca pelo melhoramento moral do ser, por meio da prática física de uma arte marcial.

Apesar da justa dificuldade apontada pelo sensei, a respeito das barreiras culturais entre Japão e Brasil, a própria prática do Karate-Do que, por ser fundamentada nos princípios do Dojo kun e do Budo,  trás em si fortes traços culturais da sociedade japonesa, e já molda nosso comportamento e nossa expressão física, de certa forma, à maneira japonesa de ser, mesmo que apenas no espaço reservado para isso, o Dojo. Portanto, é possível afirmar que, em certa medida, mesmo que não seja possível praticar certos costumes do povo japonês sendo um brasileiro socializado no brasil, o Karate-Do possibilita - até porque coloca como condição à sua prática - uma vivência deles fora do Japão.

Para justificar uma afirmação é sempre bom citar algum exemplo de que ela tem, pelo menos, verossimilhança. Neste caso, poderíamos trazer exemplos de outras culturas presentes entre o povo brasileiro, que não são de origem brasileira, mas que possibilitam a seus adeptos vivenciar um pouco delas fora de seu país, porém, a quantidade desses exemplos (análogos ao do Karate-Do) seria tão grande que não caberia neste trabalho, uma vez que o Brasil, ao contrário de países como o próprio Japão, é conhecido internacionalmente por abarcar várias culturas diferentes.

A própria vivência de Alves sensei parece mostrar que é possível, pelo menos, adotar alguns aspectos de uma determinada cultura longínqua e aplicar à nossa vida. No caso dele, essa aplicação se concretiza em sua vida particular, pois ele vive o Karate-Do de forma pessoal, como todos nós, porém, é inegável que sua história influenciou - digo sem medo de estar exagerando - milhares de pessoas ao longo de toda sua trajetória, ou seja, por meio dele, a arte do Karate-Do passou a ser uma influência cultural japonesa difusa no Estado do Rio Grande do Norte ao longo de décadas.

Sobre ser um karateka

Perguntamos no início, se é preciso aderir a traços ou elementos culturais dos japoneses para que alguém se considere um karateka. A resposta a essa pergunta precisa de alguma contextualização a respeito de que traços ou elementos seriam esses e, também, o que é ser ou se considerar um karateka. Vamos começar falando a respeito desse controverso termo (alguns o consideram dessa forma).

Para uns, essa “classificação” de karateka serve para todos que praticam o que se chama genericamente de Karate, seja qual for a escola/estilo, considerando-se indiferente também se o que se pratica é uma arte marcial ou um esporte de luta que limita a essencial e necessária marcialidade que deve haver nela. Para outros, deve haver uma diferenciação - nos incluímos nesse grupo -, pois, ao contrário do que se diz no senso comum, o Karate não é um só, ou seja, Karate esportivo não pode ser considerado Karate da mesma forma que uma arte que não vise a simples busca por disputa esportiva, mas também o aprendizado de valores além dessa prática esportiva. Nesse sentido, (ALVES, 2023) afirma: “[...] arte marcial não é esporte. Você pode até tentar juntar os dois, mas você vai ter que tirar 50% do poderio da arte marcial”. Com fundamento tanto nesta citação como no que colocamos na nota de rodapé desta página, nosso entendimento é de que as duas coisas não devem ser admitidas como sendo a mesma coisa ou dentro de uma mesma classificação.

Assim, crendo que para coisas diferentes devem haver classificações diferentes, adotamos aqui que o termo “karateka” designa alguém que busca a prática de uma arte, algo além de apenas uma prática esportiva, enquanto que “atleta de Karate esportivo” designa outra coisa, ou seja, a prática de um esporte de luta com regras e finalidades completamente diferentes da arte marcial - claro que essa é uma opinião pessoal e pode ser desconsiderada por qualquer um. Então, voltando ao raciocínio inicial, perguntamos: é preciso aderir a traços ou elementos culturais dos japoneses para que alguém seja um karateka? Como estamos aqui tomando como exemplo fundamental a prática de Juarez Alves sensei, e não nos resta dúvida de que ele é um verdadeiro karateka, vejamos se, em decorrência de sua prática de Karate-Do, algo da cultura japonesa se faz necessariamente presente em sua vida.

Não vamos afirmar que é necessário aderir, ou seja, que é necessário um mergulho na cultura japonesa, uma transformação radical nos hábitos, como se estivéssemos aderindo a uma religião, mas afirmamos que é preciso vivenciar de alguma forma traços culturais do Japão. A própria prática do Karate-Do dentro do Dojo já necessita de um comportamento diferente de como se comporta um brasileiro: é uma condição. Ali temos que obedecer a normas da cultura japonesa, falamos, inclusive, palavras da língua japonesa. Todos os aspectos que compõem o ambiente do local de prática do Karate-Do são estrangeiros e vêm do ambiente cultural japonês. Claro que não praticamos Karate-Do dentro de um Dojo tradicional, mas a atmosfera, o clima de uma aula de Karate-Do, mesmo nos nossos ginásios e academias, parece ter algo transportado de lá (Japão) pra cá. É, portanto, necessário que, pelo menos durante a prática do Karate-Do, nos comportemos de uma maneira que busque nos aproximar das formas de vida japonesas. Mas, e fora dos Dojo?

Uma forma da cultura japonesa muito próxima do Karate-Do: o Bonsai

Sabemos que Alves sensei admira tanto o que a cultura japonesa pode nos oferecer que não se limita a praticar apenas a arte do Karate-Do: ele é considerado também uma referência na arte do Bonsai. Isso toma uma importância grande na presente argumentação em favor de que os traços culturais japoneses trazidos pela prática do Karate-Do nos influenciam até mesmo fora dos Dojo, uma vez que, além de se dedicar a um forte traço cultural dentro do local de prática, o sensei também o faz fora dele, por meio do Bonsai. Fica evidente que há um paralelo entre as duas artes e sobre isso, Alves sensei afirma: “a cultura oriental, apesar de eu não copiar muito, mas eu queria conhecer outra cultura do Japão pra fazer uma certa comparação com o karate”. Mais a diante ele afirma no mesmo sentido: “Para mim entender mais o Karate, eu busquei outra arte”. Inegavelmente, Juarez Alves é nosso maior exemplo, mas posso citar que tenho conhecimento de outro professor que tive, que também tem o mesmo hábito do cultivo do Bonsai paralelamente ao Karate-Do. Mesmo não tendo outros exemplos para citar, podemos afirmar com certa segurança, que essa prática paralela de uma arte marcial japonesa com outra representação cultural do mesmo país, não é incomum.

Ainda podemos apontar outro traço da cultura japonesa presente na vida de Alves sensei, quando ele afirma que sua prática do Bonsai se justifica a partir de um costume japonês que diz ser preciso haver três coisas para se viver com equilíbrio: uma família, uma arte e uma profissão. Isso nada mais é do que um princípio norteador das formas de vida japonesas, é uma filosofia japonesa aplicada à vida ocidental no exemplo de Juarez Alves sensei. Ele pontua ainda que, no Japão - diferente do Brasil, onde é um entretenimento - o Bonsai é uma cultura.

Fonte: https://yamadori.co.uk/2016/06/27/mr-miyagi-and-the-karate-kid-a-gift-from-brazil/

Portanto, vemos que é plenamente possível, inclusive, benéfico, incluir em nossas formas de vida aspectos da cultura japonesa. Assim, de acordo com a definição particular que demos aqui de karateka, cremos que é necessário que, minimamente, alguns traços culturais japoneses estejam presentes na rotina de um praticante de Karate-Do, considerando-se essa prática algo além do que busca um atleta de Karate esportivo.

Oss!
















Obras Citadas

  1. ALVES, J. G. (30 de junho de 2023). Entrevista SENSEI JUAREZ ALVES para MIYAMOTO KARATÊ STORE - Entrevista 02. (M. Store, Entrevistador) Acesso em 31 de junho de 2023, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=q-F7uVAecqc

  2. Dojo Kun explicado. (06 de Setembro de 2021). Acesso em 01 de Julho de 2022, disponível em Instituto Shinjigenkan do Brasil: https://shinjigenkan.com.br/dojo-kun-explicado/ 

  3. HABERMAS, J. (2002 (edição brasileira)). A inclusão do outro. Estudos de teoria política. São Paulo, São Paulo, Brasil: Edições Loyola. Acesso em 01 de Julho de 2023

  4. SILVA, H. P. (15 de Dezembro de 2020). Karate-Do e Bonsai: duas ilusões de ótica. Acesso em 07 de Julho de 2023, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate-Do: https://estudosdekarate.blogspot.com/2020/12/karate-do-e-bonsai-duas-ilusoes-de-otica.html

  5. SILVA, H. P. (10 de Março de 2022). Diáspora, anacronismo e tradição no Karate. Acesso em 01 de Julho de 2023, disponível em Meus aprendizados no Karate-Do: https://estudosdekarate.blogspot.com/search?q=anacronismo

  6. TAIRA, C. (Ed.). (22 de dezembro de 2010). Budo: o segredo da filosofia oriental. Acesso em 01 de julho de 2023, disponível em Made in Japan: https://madeinjapan.com.br/2010/12/22/budo-o-segredo-da-filosofia-oriental/


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