O KARATE E SEUS RITOS DE
PASSAGEM
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 18/03/2023
Victor Turner e Arnold Van Gennep trabalham
dois conceitos clássicos da Antropologia, liminaridade e communitas, para tecer
seus estudos sobre os ritos de passagem. Procuraremos aqui abordar, com base
nesses dois conceitos, os ritos de passagem que constituem o Caminho das Mãos
Vazias.
Há palavras que muitas vezes são mal
vistas no mundo do Karate. Rito e ritual, com certeza fazem parte desse grupo. Quando nos referimos aos cumprimentos feitos no início e no final
dos treinos e às repetitivas reverências que fazemos durante os treinos, tanto
para os colegas como para os(as) professores(as) como ritos ou rituais, muitas
vezes provocamos bocas e olhares tortos e atravessados, pois esta palavra tem
uma forte conotação que faz lembrar algo ligado ao sentido de uma prática
religiosa. Porém, se tem uma coisa que há no mundo do Karate são rituais. Cabe ainda observar que, mesmo que ao utilizar
essas palavras no âmbito de um Dojo, a
intenção não seja dar conotação religiosa, muitos dos rituais do Karate, assim como os dos vários Budo, inclusive componentes do próprio
espaço que constitui um Dojo, têm,
sim, origem em costumes trazidos das religiões praticadas no oriente. Assim, inicialmente vamos buscar os
significados formais das duas palavras para podermos fundamentar seu uso neste
texto. Segundo (Houaiss, 2009):
Rito
Datação: 1572
Substantivo masculino
1.
Conjunto
das cerimônias que usualmente se praticam numa religião, numa seita etc.;
liturgia
Exs.: r. católico, r. do candomblé
2.
Derivação:
por metonímia. Religião, culto, seita
3.
Rubrica:
maçonaria. conjunto das regras de uma cerimônia em que se comunicam os graus
secretos da maçonaria
4.
Rubrica:
maçonaria. Conjunto das cerimônias de cada sistema maçônico
5.
Derivação:
por analogia. Série de procedimentos invariáveis na realização de determinada
coisa; costume, hábito (mais us. no pl.)
Ex.: os r. da boa educação
6.
Derivação:
por metonímia. Cerimônia que segue estes procedimentos
Ex.: r. fúnebre
7.
Rubrica:
termo jurídico. Conjunto de formalidades que devem ser observadas para que um
ato possa ser considerado válido ou para a execução de determinada diligência
Ritual
Datação: 1614
Substantivo masculino
1.
Rubrica:
liturgia.
livro que contém os ritos
estabelecidos por uma religião e a forma de executar as cerimônias
2.
Derivação:
por metonímia.
o culto religioso; cerimônia,
liturgia
3.
Derivação:
por metonímia.
conjunto de atos e práticas próprias
de uma cerimônia ritualística
4.
Derivação:
por extensão de sentido.
conjunto das regras socialmente
estabelecidas que devem ser observadas em qualquer ato solene; cerimonial
Ex.: o r. e a ocasião pediam um traje
a rigor
Adjetivo de dois gêneros
5.
Relativo
ou pertencente a 1rito
Ex.: prática r.
6.
Conforme
a um 1rito, que se assemelha a um 1rito
Ex.: cuidado r.
Como podemos notar, as
palavras rito e ritual realmente têm um significado que lembra os atos ligados às
cerimônias religiosas, porém, também têm seu uso em atos sem essa conotação,
podendo significar apenas um hábito ou costume. Assim, vamos fazer uso
indistintamente tanto de uma como de outra palavra pois em dado momento vamos
utilizá-las para fazer referência a atos bem organizados e definidos, ou seja,
ritualizados, do cotidiano do Karate, mesmo
que a intenção não seja dar um aspecto de coisa religiosa.
HÁ RITUAIS DE
PASSAGEM NO KARATE?
Na caminhada do Karate, o aluno inicia sua prática num estágio em que não tem
acesso a várias coisas desse novo mundo, como ocorre em qualquer atividade.
Sai, então, em busca de alcançar o status
necessário para que esteja apto a tal acesso. Nessa caminhada, passa por várias
etapas, as graduações. Esses momentos são cercados de tensão, cerimônias,
simbolismo, alegrias e, às vezes, tristezas e, não podemos esquecer, podem
sobrar alguns hematomas.
O sociólogo francês Émile Durkheim
(1858-1917), na sua obra clássica As
formas elementares da vida religiosa, utiliza-se do termo interdito para referir-se às coisas que não podem ser acessadas pelo mundo
profano, pois pertencem ao mundo das coisas sagradas (WEISS, 2013, p. 163 apud Durkheim
1968:68). Aqui utilizamos
o termo para nos referirmos às coisas não acessíveis (interditas) aos karateka em graduações iniciantes, como as desejadas faixas que vêm
depois da branca, os kata mais
avançados, as conversas com os mais graduados, as técnicas mais elaboradas,
entre outros interditos.
Observando esses interditos do Karate, podemos notar que alguns deles
têm um aspecto de coisas sagradas, pois provocam um certo encanto em seus
praticantes e, como exposto, são acessíveis apenas depois que o pretendente
passa por certas etapas, testes e rituais (os momentos reservados ao exame de
faixa para a obtenção do próximo grau), e as pessoas que já os acessam, justamente
pelo fato de poderem acessá-los estão a todo momento mostrando - e em alguns
casos tentando provar - sua superioridade, ou seja, essas coisas interditas,
esses símbolos, dão a certos iniciados uma autoridade, um poder, fazem eles
exercerem um encanto e dão a eles, portanto, o direito a um status social.
Os ritos de passagem
são uma prática que está presente a todo momento ao nosso redor. Todas as vezes
em que saímos de uma situação social e passamos para outra, ocorre uma mudança
no nosso status dentro dessa
sociedade e geralmente a própria sociedade ritualiza esses momentos, pois
determina motivos, regras e condições para sua realização. Podemos vê-los
acontecer claramente no mundo do Karate quando
nosso status social dentro da
sociedade em que se constitui um Dojo
muda a cada troca de faixa. Nesses momentos, passamos a acessar coisas que
antes eram, para nós, interditas. Portanto, os ritos ou rituais de passagem
estão, também, dentro do Karate.
O CONCEITO DE
LIMINARIDADE NO KARATE
Um
conceito fundamental da presente discussão é o de liminaridade dos ritos de
passagem, que é o momento de transição entre status e/ou “estados”[1]
diferentes. Essa situação é vivenciada no Karate
nos vários momentos das trocas de faixa, como também nos de troca de graus após
a obtenção da faixa preta. Nessas horas o praticante não é mais o mesmo que
começou a prática há alguns anos, portanto, não está mais naquele nível técnico
do início, nem atingiu, ainda, o nível técnico desejado para a próxima
graduação, mas é alguém que está em fase de transição entre dois lugares do Do, o caminho a ser trilhado na prática
do Karate-Do. Porém, é possível, na
nossa opinião, perceber em nós mesmos essa indefinição no dia a dia da prática:
num dia praticamos uma técnica de uma forma, às vezes com pouca consciência do
que estamos fazendo, e no outro estamos fazendo de forma diferente e com
objetivos mais definidos. Ou seja, o karateka
parece estar em constante liminaridade. O próprio Karate é uma
instituição que precisou passar por mudanças de status dentro da sociedade que o cercava e, dessa forma, passou,
assim como seus praticantes, por situações de liminaridade. Sem dúvida, o maior
desses momentos de indefinição porque passou a arte marcial de Okinawa, que deu
origem ao que hoje conhecemos como Karate-Do,
foi quando saiu de sua terra natal passando para o Japão. Ali, ao se apresentar
abertamente à sociedade japonesa, sofreu grande transformação.
A partir do momento em que foi levado para a chamada ilha principal do
arquipélago japonês, teve que se submeter às exigências culturais daquele país,
passando por fases que podemos, sem dúvida, apontar como liminaridade, pois
estava indefinido dentro de uma transição. Houve mudanças em várias
nomenclaturas e técnicas da arte marcial para que o Japão pudesse aceitá-la,
uma vez que o Karate era originado de
um ambiente cultural que sofria várias influências da China, um inimigo do
Japão, e ali não poderia ser aceito sem as devidas adaptações.
Sobre essa situação, (TURNER, 1974, p. 05) afirma:
“Liminaridade é a passagem entre status e estado cultural que foram cognoscitivamente definidos e logicamente
articulados. Passagens liminares e “liminares” (pessoas em passagem) não estão
aqui nem lá, são um grau intermediário. Tais fases e pessoas podem ser muito
criativas em sua libertação dos controles estruturais, ou podem ser
consideradas perigosas do ponto de vista da manutenção da lei e da ordem”.
Uma pessoa (melhor
dizendo, um karateka) em
liminaridade, sendo, portanto, alguém que está em construção tanto física como
intelectualmente, não está definida em seu “estado”, nos temos de (TURNER,
1974, p. 05):
“Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são necessariamente ambíguos, uma vez
que esta condição e estas pessoas furtam-se ou escapam à rede de classificações
que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço
cultural. As entidades liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e
entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e
cerimonial. Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica
variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as transições
sociais e culturais”.
Dessa forma, essa pessoa pode ser
bastante contestadora de alguns aspectos da arte. Como citado anteriormente,
“Tais fases e pessoas podem ser muito criativas em sua libertação dos controles
estruturais, ou podem ser consideradas perigosas do ponto de vista da
manutenção da lei e da ordem”, ou seja, as pessoas que estão em fase de
liminaridade estão passando, de certa forma, por um processo de libertação de
um “estado” que havia no estágio anterior e essa sensação de libertação pode
levá-la a um de contestação do que se lhe impõe.
Porém, no mundo do Karate-Do as coisas não podem ser assim.
O Karate-Do não é algo para ser
contestado por seus praticantes e sim, praticado. Segundo (LOWRY, 2011, p. 136), “O sensei é o chefe. O Dojo não é nem nunca pode ser uma democracia”. É possível que o
aluno, a partir do momento em que o(a) sensei
abra espaço para tanto, converse sobre algo do Karate-Do, mas contestar não é algo que se tenha liberdade para
fazer, como numa sala de aulas de uma escola, por exemplo.
No caso do Karate enquanto uma instituição em liminaridade na época de sua
chegada ao Japão, porém, parece-nos que ele não exerceu essa periculosidade ou
rebeldia de quem está num processo de libertação dos antigos “controles
estruturais”. Pelo contrário, parece-nos que o Karate, na verdade, sofreu efeitos negativos da transição pela qual
passou, uma vez que não causou à cultura do Japão nenhuma contestação ou
questionamento e acabou sendo alvo da transformação a que nos referimos, tendo
que, em vez de se manter como era antes e receber acréscimos nessa transição,
deixar para trás uma parte da sua longa trajetória de acúmulo de técnicas e
tradições para passar a um próximo nível de relacionamento com a cultura
japonesa.
Não negamos que essa transição trouxe
para o Karate um acréscimo cultural e
técnico e lhe proporcionou - por um ponto de vista - crescimento, mas esse
aspecto é, na nossa opinião, menos relevante do que as perdas que sofreu. Essa
perda de parte do que era para que houvesse uma adaptação pode ser uma
consequência do fato de que o Karate não
era, antes disso, uma arte marcial japonesa, apesar de vermos afirmações de que
a arte marcial okinawana é uma milenar técnica de luta japonesa.
Ora, não sendo, até então, parte da
cultura japonesa, o Karate não
poderia ter tido as características das outras artes marciais do Japão, ou
seja, não era uma das artes marciais que possuíam em sua nomenclatura a
partícula jutsu[2]
que era característica das artes marciais seculares e - aí sim, podemos dizer,
talvez - milenares daquele país, a ser substituída pela outra partícula Do. Tais alterações, como é amplamente
divulgado e conhecido, ocorreram em decorrência das mudanças no campo da política
japonesa que se abria para relações com outros países e teve que adaptar seu
sistema educacional, do qual faziam parte as artes marciais. O uso da partícula Do simbolizou a mudança do papel que as
artes marciais tinham no Japão. Antes (na época da utilização da partícula jutsu), essas técnicas eram utilizadas
tanto para a preservação da própria vida como para o extermínio da dos inimigos
no campo de batalha. Posteriormente (na época da transição para o Do, quando surge no Japão o Karate), as artes marciais passam a
servir para a educação do povo, adquirindo características de mera prática
esportiva. O Karate vindo de Okinawa,
sofre fortemente os efeitos dessa época.
Por esse motivo,
diante de toda a pressão que sofreu, o Karate,
mesmo sendo admirado no Japão a partir das demonstrações que foram realizadas,
sobretudo sob a responsabilidade de Gichin Funakoshi, teve que enfrentar
grandes dificuldades, inclusive no campo da xenofobia pois, como já afirmamos,
Okinawa e seu Karate eram fortemente
influenciados pela China, um inimigo do Japão. Assim, pela análise que podemos
fazer, constatamos que o período de liminaridade do Karate enquanto estava se adaptando às exigências do Japão, lhe foi
menos benéfica que maléfica.
AS DUAS
LIMINARIDADES DENTRO DOS RITUAIS DE PASSAGEM DO KARATE
Acreditamos que a liminaridade do karateka ocorre de duas formas. Uma é
essa grande e constante busca e transformação porque passa em direção à faixa
preta, imaginando que ela seja o ápice da sua jornada, e que continua ocorrendo
após a chegada nesse grau, pois, mesmo após a obtenção da faixa preta ainda há
níveis de graduação a serem atingidos, os chamados dan. A busca do karateka é,
sem dúvida, a faixa preta e o status
que ela proporciona. Durante toda a sua caminhada na trilha do Karate-Do, ele está em permanente estado
de liminaridade. Ele está sempre saindo de um “estado”, realizando ritos de
passagem e, assim, carregando algo dele em si, e indo em busca do novo “estado”
ou status social proporcionado pela
obtenção das sucessivas graduações até a chegada à faixa preta. A liminaridade
é um conceito que nos parece bem definido, pois encerra uma situação em que o
liminar (pessoa ou instituição em liminaridade) está dentro de um ritual de
passagem e nesse momento, entre dois “estados”, indefinido.
Porém, o estado de liminaridade do karateka nos parece algo que não tem
começo nem fim, não está exatamente demarcado. Apesar de existirem os momentos
dos exames de faixa, há uma constante mudança de pensamento sobre a arte
marcial que se repete dia após dia quando, nos treinamentos, nas leituras, nas
conversas, nos cursos, e porque não dizer, nos campeonatos, o praticante
adquire nova carga de conhecimento que não pode ser diariamente aferida pelo(a)
professor(a) e que não lhe dá direito a assumir novo status dentro da caminhada do Karate-Do,
a não ser no momento ritualizado que poderá lhe proporcionar isso. Abordo aqui
esse constante estado de liminaridade, considerando-o uma só e grande
caminhada, e as trocas de faixa que nele ocorrem, seus passos. Esta forma é
mais diluída no tempo (dura toda a vida do karateka)
e, portanto, mais difícil de se perceber e, a não ser que o praticante esteja
sempre atento à sua prática e às mudanças pelas quais passa, não perceberá que
seu “estado” é constantemente indefinido, ou seja, não está definitivamente em
uma graduação, mas sempre está em busca da próxima sem ter saído ainda da
anterior.
A outra forma consiste em cada um dos
passos antes referidos, as sete mudanças de faixas pelas quais vai passar entre
a branca e a preta, sendo cada uma dessas mudanças de faixa marcada por um
ritual de passagem e, após isso, as passagens pelos dan, ou seja, cada troca de faixa e de grau proporciona um estado
de liminaridade diferente. Sendo esta forma mais condensada e definida no tempo
e demarcada pelos seus símbolos, as faixas e suas cores, é mais fácil de ser
identificada, inclusive, pelo próprio liminar, ou seja, pela pessoa que está
entre dois “estados”.
De qualquer forma,
durante o ritual da troca de faixas, apesar de ser um momento facilmente
perceptível, a liminaridade em si, ou seja, conforme (TURNER, 1974, p. 117), o momento em que a
pessoa não está nem aqui nem lá, pode não ser bem percebido. Existe, porém, o
momento simbólico que marca e exprime essa liminaridade que é o exato momento
da troca das faixas. Ali o símbolo do antigo status, ou seja, a faixa na cintura, deixou de existir ou,
existindo, não tem mais a validade que tinha momentos antes, mas ainda vai
voltar a existir e a pessoa que é por ele definida estará, até lá, indefinida.
Neste momento, inclusive, o liminar não sabe exatamente em que estágio da
caminhada vai estar quando o ritual terminar porque ele pode continuar por mais
um ciclo na mesma graduação (caso de uma reprovação no exame), pode passar para
a próxima (caso de uma aprovação no exame) ou, inesperadamente, passar por mais
de uma graduação no mesmo exame. Pode ocorrer, também, que o aluno seja
rebaixado na sua graduação. Portanto, no momento exato da liminaridade do karateka ele está realmente sem um status e um “estado” definidos.
O CONCEITO DE
COMMUNITAS NO KARATE
Como já procuramos abordar, durante os rituais de
troca de faixa, momentos em que o aluno retira da cintura o símbolo do seu status dentro do Karate, ou mesmo durante todo o exame, quando a faixa parece ter
perdido seu peso, ele se vê desprovido de uma posição definida e encontra-se,
portanto, em liminaridade. “Não está aqui nem lá”.[1] Victor W. Turner trabalha com o conceito que ele nomeia de
“Communitas” para expressar algo diferente de comunidade ou estrutura.
Trata-se, na verdade, de um estado em que, devido aos efeitos da liminaridade,
ocorre, até certo ponto, uma suspensão da sacralidade (como apontado acima)
atribuída a certos membros da comunidade (aí sim, o sentido de comunidade)
envolvida. Sobre isso, afirma (DAWSEY, 1991, p. 04):
Nos momentos de suspensão das relações cotidianas é possível
ter uma percepção mais funda dos laços que unem as pessoas. Despojadas dos
sinais diacríticos que as diferenciam e as contrapõem no tecido social, e sob
os efeitos de choque que acompanham o curto-circuito desses sinais numa
situação de liminaridade, pessoas podem ver-se frente a frente. Sem mediações.
Voltam a sentir-se como havendo sido feitas do mesmo barro do qual o universo
social e simbólico, como se movido pela ação de alguma oleira oculta,
recria-se. A essa experiência Turner dá o nome de communitas[3].
Foto do dia do exame de faixa do autor deste texto, realizado em dezembro do ano de 2014.
O próprio professor(a), nesse momento, não está em
liminaridade, mas também está sob efeito do ritual de passagem.
Na
realidade toda posição social tem algumas características sagradas. Porém, este
componente “sagrado” é adquirido pelos beneficiários das posições durante os
“rites de passage”, graças aos quais mudam de posição. Algo da sacralidade da
transitória humildade e ausência de modelo toma a dianteira e modera o orgulho
do indivíduo incumbido de uma posição ou cargo mais alto. [...] A liminaridade
implica que o alto não poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem está
no alto deve experimentar o que significa estar em baixo. (TURNER, 1974, p. 119)
O ar de sacerdote/pessoa sagrada que tem
aquele que ostenta a faixa preta pois comanda os rituais todos do dia a dia do Dojo, ocupando nele o lugar
físico/simbólico (o Kamiza ou Shomen)[4] reservado à maior
autoridade, advém dos vários momentos de liminaridade pelos quais passou e
estar presente em vários outros em posição de superioridade lhe "modera o
orgulho" pois sabe que já passou por ali. No momento da troca de faixas a
liminaridade dos liminares lembra aos mais graduados que já estiveram ali e que
eles só estão no nível em que estão porque esses níveis mais baixos lhe deram a
oportunidade de ali chegarem. Aí está, conforme (TURNER, 1974, p. 118), a referida
"mistura de submissão e santidade" (mistura e não oposição):
O que
existe de interessante em relação aos fenômenos liminares no que diz respeito
aos nossos objetivos atuais é que eles oferecem uma mistura de submissão e
santidade, de homogeneidade e camaradagem. Assistimos, em tais ritos, a um
“momento situado dentro e fora do tempo”, dentro e fora da estrutura social
profana, que revela, embora efemeramente, certo reconhecimento (no símbolo,
quando não mesmo na linguagem) de um vínculo social que deixou de existir
[...].
É importante abordar que, para que
esteja nesse constante estado de liminaridade, ou seja, sempre buscando acessar
o próximo status sem ter saído do
anterior e, portanto, não estando parado num nível, é necessário estar aberto a
novos conhecimentos, a uma superação ou um melhoramento do que julgava saber,
ou seja, é preciso boa dose de humildade.
Obras Citadas
1. DAWSEY, J.
C. (1991). Antropologia da experiência. Cadernos de Campo, 13, 163-176.
Acesso em 12 de Fevereiro de 2023, disponível em
https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/download/50264/54377
2.
Houaiss, I. A.
(Junho de 2009). Houaiss Eletrônico. Acesso em 12 de Fevereiro de 2023
3.
LOWRY, D.
(2011). O Dojo e seus significados: um guia para os rituais e etiqueta das
artes marciais japonesas. (J. S. Freire, Trad.) São Paulo, SP, Brasil:
Cultrix. Acesso em Julho de 2022
4.
TURNER, V. W.
(1974). O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. (N. C. Castro,
Trad.) Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil: Vozes. Acesso em 12 de
Fevereiro de 2023
5.
WEISS, R. A. (19
de Abril de 2013). Efervescência, dinamogenia e a ontogênese social do
sagrado. Acesso em 18 de Março de 2023, disponível em Scielo:
https://www.scielo.br/j/mana/a/tLgbzYSVSS6g6wnbPXtpbcD/abstract/?lang=pt
[1] “O próprio Van Gennep definiu os rites
de passage como “ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado, posição
social de idade”. Para indicar o contraste entre “estado” e “transição”,
emprego “estado”, incluindo todos os seus outros termos. É um conceito mais
amplo do que “status” ou “função”, e refere-se a qualquer tipo de condição
estável ou recorrente, culturalmente reconhecida. [...] um conjunto de
condições culturais (um “estado”)[...].”
[2] Ainda assim, há uma nova escola de Karate que se denomina Karate
Jutsu, afirmando ser um resgate de um antigo método perdido e que possuía
este nome.
[3] Turner encontra nas discussões de Durkheim sobre “efervescência
social” um exemplo de liminaridade e communitas (Durkheim [1912] 1989: 456).
Communitas, termo inspirado pelas reflexões de Martin Buber, não deve ser
confundido com qualquer princípio de organização social em comunidade, ou com
formas de solidariedade descritas por Durkheim. Trata-se de uma experiência que
irrompe de modo espontâneo a partir de momentos de interrupção das formas de
organização social (Turner 1969b: 126-127). (Nota de rodapé original do texto
citado)
[4] O kamiza é a
parede frontal do dojo – a parede em
que fica o kamidana, ou o santuário
do dojo. [...] Se for necessário
fazer uma distinção, a parede da frente do dojo
também pode ser chamada de shomen ou,
em uma tradução livre, a “parte superior”. E mesmo podendo ser chamado de kamiza, kamidana é a palavra mais usada
para o santuário. (LOWRY, 2011, pp. 24-25)