A OBRA DE NAKAYAMA SENSEI (UM CLÁSSICO) ESTÁ ULTRAPASSADA?
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 28/02/2021
Há na prática do Karate-Do[1], duas coisas, basicamente: uma é a prática, a outra é o estudo (teoria, história, palavras em japonês, etc). Mas pergunta-se: por que uma arte marcial precisa de estudo? Afinal, uma arte marcial é uma luta... é preciso aprender a lutar e não estudar e teorizar.
Sabemos de onde vem o Karate-Do – na verdade, achamos que sabemos e isso já é um objeto de estudos e controvérsias – e vindo de onde vem, trás consigo uma bagagem cultural - melhor dizendo, multicultural - que exige compreensão e entendimento por parte de quem passa a praticá-lo sem ser nativo da cultura do Japão, de Okinawa, ou será da China, da Índia?
Geralmente, a necessidade ou a curiosidade para o estudo das coisas do Karate-Do surge diante das palavras em língua japonesa que são utilizadas em todos os treinos. Ou se estuda e pesquisa, ou se permanece na situação de achar que porque o sensei está dizendo que é daquele jeito, devo fazer e pronto, ou que o sensei, por ser sensei, sabe a verdade do que está dizendo. Mas, o próprio sensei deve ter estudado para saber o que sabe – ou não. Aliás, o que é mesmo um sensei?
O Karate-Do é uma arte marcial e sendo assim, não é uma simples forma de luta. Mesmo não aprofundando essa discussão, podemos ver, conforme (Filho, 2015), como o conceito de arte marcial em que está inserido o Karate-Do se afasta do de uma simples forma de luta:
Embora encerrados por um complexo de aprendizagens capaz de conduzir à perfeição técnica e à plenitude espiritual, como no caso dos samurais, esses sistemas, ante a longevidade do instante em que a produção material passou a representar acumulação de riquezas, foram, inicialmente, concebidos com base nas habilidades e experiências humanas. Quando apoiados nas destrezas pessoais, ou minúcias práticas indispensáveis à execução de seus objetivos, e não propriamente com fulcro no conhecimento cientificamente produzido, esses sistemas de guerra constituíram-se em verdadeiras artes. Devido a esse status artístico, eles foram denominados de artes de guerra, ou, como são conhecidos no Ocidente, artes marciais. Essas atividades, enquanto resultado de um processo de produção de riqueza material, historicamente estabelecido, foram essenciais ao desenvolvimento econômico das grandes civilizações da Antiguidade Oriental.
Toda essa complexidade teórica das artes marciais, principalmente as abrangidas pelo conceito japonês de Budo – e aqui nos atemos apenas ao Karate-Do -, deu origem a uma infinidade de trabalhos nem sempre de boa qualidade na internet, em livros, revistas, artigos científicos, reportagens e teorias de boca a boca. Entre esses trabalhos e tradições orais todos, alguns se destacam e são de boa qualidade.
Mais uma vez, referindo-me especificamente ao Karate-Do, há autores que são, mesmo não tendo suas obras realmente lidas, sempre lembrados, e até citados – mesmo sem serem lidos, volto a dizer. Posso lembrar dos nomes de Gichin Funakoshi, Masatoshi Nakayama, Hirokazu Kanazawa e Hidetaka Nishiyama. Curiosamente, o primeiro foi professor dos outros três.
As obras escritas por esses autores tem sido, diante da modernidade, consideradas ultrapassadas para os parâmetros técnicos atuais, porém, creio que é um equívoco pois elas têm as características de um clássico, ou seja, sempre suscitam novas discussões a partir delas e sempre são retomadas e utilizadas para a solução de problemas relativos tanto à prática como à teoria dessa arte (o Karate-Do).
Isso também se aplica a muitas outras áreas do conhecimento. Não digo a todas porque se afirma que nas ciências exatas ou naturais não há clássicos, uma vez que nessas ciências o conhecimento é cumulativo e vai sendo superado por novas pesquisas, ficando os primeiros e mais antigos conhecimentos reservados ao campo da história, pois não servem mais para solucionar os problemas do presente, conforme (Giddens & Turner, 2005):
A teoria científica é sistemática porque testa as leis explicativas por meio de processos experimentais e acumula, assim, constantemente conhecimentos verdadeiros. Já que a acumulação ocorre, não há necessidade de textos clássicos. “O teste mais rigoroso do conhecimento verdadeiramente cumulativo”, afirma Merton, “é que as mentes comuns podem resolver problemas, hoje, que os grandes cérebros antes sequer conseguiam começar a resolver.” Numa ciência verdadeira, portanto, “o louvor dos grandes colaboradores do passado cabe principalmente à história da disciplina” (Merton, 1967ª, p.27-8). A investigação de personalidades antigas representa uma atividade histórica que nada tem a ver com o trabalho científico: é tarefa para historiadores, não para cientistas sociais. Merton opõe vividamente essa distinção radical entre ciência e história à situação reinante nas humanidades, onde, “por contraste direto, toda obra clássica – poema, drama, romance, ensaio ou tratado histórico – tende a integrar a experiência direta das gerações posteriores” (p.28).
Vejamos que o conceito de clássico não é aplicado apenas porque a obra é antiga, mas principalmente pelas qualidades acima e outras. Uma obra pode ser antiga, mas não ser um clássico. Isso pode ocorrer por vários motivos: seu conteúdo pode não ser relevante para as novas gerações, pode ser que o conteúdo seja sabidamente errado ou superado, a obra pode ter caído no esquecimento devido ao desuso ou a influências que a colocaram num lugar de descrédito, enfim, um livro clássico tem qualidades que superam a velhice.
A seguir citamos um trecho de (Sell, 2002) em que são abordados alguns aspectos que envolvem a leitura de obras consideradas clássicas no âmbito das Ciências Sociais:
Ao longo da história do pensamento social foi se firmando a tradição de considerar a obra destes três pensadores como fundamental para a construção da sociologia. Ao se deparar com esta disciplina, os iniciantes das ciências humanas se defrontam com o estudo de suas obras. E, diante disto, surge uma pergunta inevitável: afinal, por que o pensamento de Durkheim, Weber e Marx se tornou tão fundamental?
Nascido no ambiente da sala de aula, este texto quer ajuda-lo a dar uma resposta para esta pergunta. Além disso, ele quer também mostrar-lhe não só a importância que esses autores tiveram para a história da sociologia, mas, principalmente, a importância que eles possuem ainda hoje para o entendimento do mundo contemporâneo. Longe de ser uma mera volta ao passado, o estudo da teoria social clássica representa um verdadeiro mergulho no presente. Enveredar pelos seus caminhos representa a possibilidade de compreensão do mundo em que vivemos e, portanto, de um pouco de nós mesmos.
Evidentemente que neste texto não se fala em Karate, porém, o tema abordado é análogo ao que abordamos aqui. Primeiramente é trazida a questão de que com a consolidação das teorias sociológicas, três pensadores foram sendo cada vez mais afirmados como muito importantes para essas ciências e, com o tempo, ganharam o status de clássicos, sendo sempre revisitados tanto por iniciantes como por outros cientistas já experientes. Parece-me que os autores de livros sobre Karate abordamos aqui não são considerados clássicos, mas com o passar dos anos, como ocorreu com os autores das Ciências Sociais acima, eles passam a ter uma importância especial para os pesquisadores do Karate, tanto no aspecto teórico como no prático. Essa pode ser considerada uma característica de uma obra que se pretende ser chamada de clássica. Depois, chama a atenção o trecho “a importância que eles possuem ainda hoje para o entendimento do mundo contemporâneo”. Visitar esses autores do passado é, ao mesmo tempo, se aprofundar nas questões do presente. Ora, quem já ouviu falar das obras de Nakayama, Funakoshi, Nishyiama e Kanazawa, entre outros não conhecidos por este que escreve, quando se depara com algum problema teórico, ou mesmo prático, nas conversas sobre Karate, sempre se lembra delas na tentativa de solucionar tais questões. Quem possui tais obras, sempre lança mão delas com várias finalidades, nem que seja para comprovar como era o Karate naquela época ou para mostrar ou descobrir de onde vem o Karate de hoje.
Ainda conforme (Giddens & Turner, 2005):
Por que as disciplinas que se dizem orientadas para o mundo empírico e para o acúmulo de conhecimento objetivo sobre ele precisam recorrer a textos escritos por autores que já morreram e se foram há muito tempo? Segundo os cânones do empirismo, afinal de contas, o que quer que fosse relevante em tais textos já deveria ter sido, de longa data, verificado e incorporado à teoria contemporânea ou refutado e lançado à lata de lixo da história.
É curioso que, como o Karate é algo que se transformou muito rapidamente em poucos anos por conta de várias influências vindas de práticas esportivas que foram cada vez mais incorporadas - e afirmo que nem sempre essas influências foram boas para o Karate, como também, nem sempre foram ruins - não é raro ouvirmos muitos karateka dizendo que tem saudades do Karate de quinze ou vinte anos atrás. Muitos consideram que, por conta desse acúmulo de influências – muitas vezes nomeado de a evolução do Karate – o que foi escrito por Funakoshi e seus contemporâneos, por Nakayama, por Nishyiama, por Kanazawa e outros, já foi verificado, refutado e lançado à lata de lixo da história, parafraseando o trecho citado acima.
Uma obra que, na pobre opinião deste aprendiz de Karate-Do, se enquadra no conceito de um livro clássico é a conhecida coleção de Masatoshi Nakayama, O melhor do Karate.
Fonte: foto própria do autor.
Pois é, ainda não ouvi alguém afirmar que esses livros sejam um clássico, mas, vendo que volta e meia eles são citados nos estudos e discussões sobre Karate, que vários problemas podem ser solucionados a partir da consulta dessa obra por conter informações muito importantes, que ela foi escrita por um dos mais reconhecidos professores de Karate da história - não sei porque, não gosto muito da expressão mestre de Karate, pois parece coisa de filme de monge -, por não conhecer outra obra – isso não quer dizer que não haja - que seja de maior relevância no mundo do Karate em sua época e quiçá na nossa, em termos de inovação técnica, detalhamento, abrangência de assuntos, quantidade de fotografias, número de volumes da obra (11) e outros motivos que possam ir surgindo ao longo deste texto e apesar de não ser conhecedor profundo da obra escrita de Masatoshi Nakayama, vou procurar aqui defender seu status de clássico.
Como já vimos, uma acusação que se faz contra obras escritas muitos anos atrás, conforme trecho de (Giddens & Turner, 2005) já citado, é que com o passar do tempo, além do próprio tempo, as obras realizadas naquela época se tornam ultrapassadas. Quando analisamos uma obra literária, que registra em si as características e o conhecimento de uma época e que são consultadas décadas, séculos depois, temos que ter a sensibilidade de levar em conta que o que foi escrito naquela época mudou. Talvez não tenha mudado exatamente o que foi registrado na obra (caso de muitas técnicas de Karate que permanecem), mas, pelo menos a forma de compreender aquilo tudo, deve sim, ter mudado. A compreensão dos kata pode e é um desses pontos em que o entendimento muda constantemente.
No caso de O melhor do Karate, há 7 (sete) dos 11 (onze) volumes da obra dedicados à descrição dos kata, em fotos e textos. Essa descrição é um dos pontos mais discutidos da obra por vários motivos.
Os kata, como sabemos, são exercícios formais que transmitem a essência da arte estudada e, lembremos, essa forma de treinamento não é exclusiva do Karate. Várias artes marciais utilizam-se de kata. Esses kata mostram a forma dos movimentos do Karate e esses movimentos escondem – se assim podemos nos expressar – técnicas de defesa pessoal que, para serem decodificadas, dependem da interpretação de quem os pratica e ensina. Acho melhor, em vez de usar a palavra “escondem”, usar a palavra “preservam”.
São também uma modalidade de competição, ou seja, quem consegue executar o kata escolhido, com maior perfeição, dentro de todos os critérios técnicos existentes, ganha a disputa. E esses critérios mudam de uma entidade para outra, e são centenas de entidades, cada uma afirmando ser detentora do verdadeiro Karate. Há também as disputas em que se fazem demonstração de aplicações das técnicas dos kata, demonstrações esses chamadas bunkai ou, dependendo da entidade, embu.
Com a tal evolução do karate, os critérios de avaliação dos kata e as interpretações deles, dentro e fora das competições, mudam, ano após ano, mas os livros continuam lá, inalterados. A coleção O melhor do Karate, conforme as informações da edição que tenho, foi publicada em 1977, e é evidente que muita coisa mudou daquele tempo para cá (quarenta e quatro anos). Diante disso, muitos dizem que ela está ultrapassada.
Não é sem razão que muitos afirmam – e concordo – que se Nakayama sensei fosse vivo, teria atualizado sua obra e muito do que escreveu originalmente, teria mudado. Esse pensamento me foi trazido por Tellvane Farias, sensei com quem treinei por um ano. Inclusive, um ponto fundamental dessa obra que teria mudado é a quantidade de kata apresentados ali. É possível afirmar que esse ponto é um dos que recebem influência política das entidades de Karate, pois existem dúzias de kata, porém, por questões internas, “não são praticados abertamente”.
Coloco “não são praticados abertamente” entre aspas porque estou parafraseando o sensei Tellvane, que é detentor de uma curiosidade e conhecimento admiráveis sobre o Karate e possuidor de um acervo de livros e documentos importante, quando numa aula ele afirmou que na Japan Karate Association (JKA) esses kata que ficariam de fora de uma atualização da obra de Nakayama e que não são apresentados em competições e os que já ficaram fora da obra e dos olhos do mundo fora da entidade, são praticados, mas apenas internamente. A JKA é citada aqui porque Masatoshi Nakayama era, conforme a coleção que aqui abordamos (Nakayama, 1977), “instrutor-chefe da Associação Japonesa de Karatê de 1955 até 1987, ano em que faleceu”.
Há ainda a considerar que Masatoshi Nakayama não escreveu somente essa obra sobre Karate. Temos conhecimento de outro importante livro, o Karate dinâmico e, durante a pequena pesquisa que realizamos para construir este texto, identificamos a existência de outra coleção chamada Practical Karate[2], que possui 05 (cinco) volumes. A data de publicação do volume 1 dessa coleção é 01/06/1963[3]. Porém, aqui nos ateremos à obra O melhor do Karate.
Como tudo, o Karate se aperfeiçoa, mas ele não se torna outra coisa, continua sendo Karate. O que é considerado novo hoje em dia, precisa de referências do passado para continuar sendo aquilo, com as melhorias do presente. Para que não seja engolido pela modernidade que parece a tudo desvirtuar, o Karate precisa sempre voltar a consultar o passado e preservar suas raízes. Ora, isso inclusive se justifica uma vez que o Karate está inserido numa cultura em que sua religiosidade – que inclusive está presente nos locais tradicionais de prática do Karate-Do, os Dojo, e até nos não tão tradicionais, os ginásios e outros espaços que não os Dojo – ensina que a reverência ao passado e aos antepassados é fundamental. A este que escreve, bastaria este argumento para dizer que a coleção de Nakayama, que trás e preserva alguns dos detalhes dessa arte marcial – alguns, já que o Karate parece ser uma coisa sem fim e até sem começo definido e assim, não pode ser contido em livros, sejam quantos forem - não está ultrapassada e que, por esse motivo, inclusive, deve ser considerada um clássico.
Oss!
Obras Citadas
1. Filho, F. D. (2015). Corpo, mente e espírito no contexto da arte das mãos vazias: a efetiva contribuição do Karate-do Shotokan a essas dimensões do ser. Natal/RN: EDUFRN.
2. Giddens, A., & Turner, J. (2005). Teoria Social Hoje. São Paulo: Unesp.
3. Nakayama, M. (1977). O melhor do Karatê (Vol. 1). (C. Fischer, Trad.) São Paulo, São Paulo, Brasil: Cultrix.
4. Sell, C. E. (2002). Sociologia clássica: Durkheim, Weber e Marx. Itajaí: UNIVALI.
[1] Convém informar sobre as palavras de origem japonesa ou okinawana aqui utilizadas que:
1.A expressão ou palavra “Karate-Do” será utilizada para referir-se especificamente à forma japonesa de Karate, enquanto que a expressão ou palavra “Karate”, para que seja feita uma distinção, será utilizada para se referir ao Karate não japonês.
2. Por não ter certeza sobre se o uso das palavras de origem japonesa ou okinawana já está ou não “aportuguesado”, escreverei as mesmas utilizando o itálico, menos nos nomes de pessoas e de lugares pois, sendo nomes próprios, creio não seja necessário.
[2] Disponível em: <Practical Karate: A Guide to Everyman's Self-defense, Livro 5: https://books.google.com.br/books?id=q8wzAAAAIAAJ&pg=PA97&hl=pt-BR&vq=%22as+shown+in+the+diagram+at+the+top+of+the+next+page.%22&source=gbs_quotes_r&cad=6#v=onepage&q=%22as%20shown%20in%20the%20diagram%20at%20the%20top%20of%20the%20next%20page.%22&f=false>. Acesso em: 24/02/2021
[3] Disponível em: <https://www.amazon.com/Practical-Karate-1-Fundamentals-Self-defense/dp/0804804818/ref=pd_lpo_14_img_0/144-9487024-4764303?_encoding=UTF8&pd_rd_i=0804804818&pd_rd_r=eb1af684-6536-40f4-9a34-d0c17e917003&pd_rd_w=MK04t&pd_rd_wg=XOnga&pf_rd_p=16b28406-aa34-451d-8a2e-b3930ada000c&pf_rd_r=G5AK3YT5CF85CGX54N3Q&psc=1&refRID=G5AK3YT5CF85CGX54N3Q>. Acesso em: 24/02/2021