Karate budo. O que é isso?

 KARATE BUDO. O QUE É ISSO?

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 07/03/2021

 

Quando dizemos "eu luto Karate budo", geralmente é em situações em que queremos tentar convencer alguém de que não praticamos essa ou aquela forma de Karate e, achando que, por isso, não praticamos um Karate “errado”, praticamos a forma certa, que é essa tal forma budo ou, pelo menos, dizemos que no nosso Karate tem Budo. Porém, pergunte a alguém que diz que pratica Karate budo: o que é isso? o que é Karate budo? A resposta pode variar de alguma forma, mas a pessoa sempre terá a intensão de dizer que pratica um Karate de verdade, o Karate antigo, sem fantasias, um Karate duro, um Karate pancada, que aquele que os outros praticam é um Karate fraco e que este é que é o certo, o autêntico, mas não saberá dizer exatamente o que é Karate budo. Também poderão dizer, é aquele Karate que não é de competição.

Pretendo trazer um pouco da minha impressão sobre o que compreendo e sobre o que nos dizem alguns textos lidos por mim recentemente sobre o assunto, com maior ênfase na obra Ki e o Caminho das Artes Marciais, de Kenji Tokitsu (TOKITSU, 2012), além de outras também importantes, para tentar alargar um pouco nosso entendimento e divulgar algo com um pouco mais de base do que o que nos trazem os you tubers vazios e os textos copiados e colados de um site ou blog para outro repetitivamente e que não dizem muita coisa, mas inventam um bocado.

Falar de Budo é falar de algo estranho e em certos aspectos, algo que é ou parece ser antagônico à nossa cultura. Aqui neste blog já devo ter cometido falhas por falar de assuntos que não vivenciei, mas, escrever sobre algo que não foi experienciado é comum e não é errado, desde que se busquem informações confiáveis. Portanto, vou me arriscar mais uma vez falando sobre um assunto (o tal Karate budo) que muitos falam quase que todos os dias, tanto nos locais de treino como nos de estudos, ou em simples discussão.

Na verdade, não se fala sobre esse tema, não se discute sobre ele, não se lê nem se pesquisa e consequentemente muito pouco se sabe sobre ele, mas se usa o termo praticamente todos os dias e às vezes várias vezes por dia e com uma segurança espantosa para quem só ouvi falar sobre ele e nunca leu nada a respeito. Falar que pratica Karate budo dá uma moral.

Claro que somente a leitura – e muito pior, o simples ouvir falar - sobre Budo e sobre Karate-Do não me parece ser suficiente para que alguém entenda sobre isso, principalmente porque aqui tratamos de um conceito e uma prática da cultura japonesa que temos muita dificuldade de entender. Por exemplo, diz-se que a prática do Karate-Do é para a vida toda. Isso espanta, de cara, ou seja, nas primeiras graduações, muitos praticantes, porque eles querem, na verdade, algo imediato e não que leve, simplesmente, a vida toda, ou seja, não compreendemos o que é esse “para a vida toda”, mas, entendam, isso é o “caminho marcial”.[1]

Portanto, considero ser arriscado falar sobre assuntos que não dominamos ou experimentamos, mesmo que já tenhamos lido algumas coisas minimamente confiáveis a respeito.

Ler e estudar sobre um assunto não é a mesma coisa de vivenciar o assunto. A leitura não nos trás a experiência. Os livros, artigos e outros textos podem conter erros, equívocos, podem ser tendenciosos, etc., enfim, mesmo o fato de vermos algo acontecer, nos dando a oportunidade de reportar tal coisa, não é o mesmo que vivermos tal coisa. Isso é apenas contar uma história e ela vai ser contada com nossas palavras, e quando alguém ler aquilo, vai ler com sua bagagem de conhecimento, fazer sua interpretação e nunca, nem quem escreveu nem quem leu, terá a experiência da vivência.

Por que falei da questão da importância de vivenciar sobre o assunto abordado? É que para entender o Budo e falar sobre ele é preciso viver o Budo, pois isso é uma espécie de filosofia ou estilo de vida, o tal “caminho” (Do) sobre o qual escreve Kenji Tokitsu. Ele não abrange somente as artes marciais, sendo essas uma expressão possível dele, mas não a única. Do é como que uma busca que se realiza pelo caminho da vida e pode ser perseguido, por exemplo, por meio das religiões, uma vez que essas tem suas práticas ascéticas.

 Esse conceito, o Do, aplicado às artes marciais japonesas, é o Budo. Claro que é possível, sim, teorizar sobre o assunto, como estamos fazendo aqui, mas Do e Budo são coisas que fogem da simples explicação e que necessitam de experiência para serem verbalizadas, textualizadas ou ensinadas de maneira mais correta.

Ora, Budo é a busca do crescimento mental, intelectual e espiritual por meio de uma prática ascética e, portanto, física e, nesse sentido, (TOKITSU, 2012) ensina:

Contrariamente a uma ideia bastante difundida nos círculos de artes marciais, Budo não é uma réplica das artes marciais como praticadas pelos guerreiros do passado. É um conceito moderno que tem como objetivo o treinamento do ser humano como um todo, intelectual e fisicamente, fazendo uso das disciplinas tradicionais de combate. Como vimos, é uma prática tradicional feita com padrões modernos de comportamento físico, aos quais questiona.

O espírito do Budo está, inclusive, em práticas esportivas que nem sabem que existe Budo, logo, o Karate esportivo pode, como outros esportes, levar (não necessariamente vai levar) a uma prática do Budo – sejamos justos. Mais uma vez recorrendo a (TOKITSU, 2012), vejamos o que ele diz a esse respeito:

Do modo como é manifestado em Budo, o caminho não é nem arcaico nem místico. Sua prática não está restrita a asiáticos e tem sido oferecida bastante abertamente como uma maneira de buscar uma certa forma de perfeição que qualquer pessoa pode desenvolver com base em exercícios físicos. Parece-me que a maneira pela qual certos entusiastas da escalada ou da vela levam suas disciplinas ao ponto extremo de colocar a vida em perigo é próxima à ideia de “caminho”, porque estão procurando, por meio de técnicas físicas altamente exigentes, conferir significado à vida através de experiências nas quais confrontam a morte.

Ainda de acordo com o mesmo autor, “se os ocidentais querem praticar Budo de um modo completo, me parece que um dos mais importantes problemas que enfrentam é o de pôr em prática a ideia de caminho”. Talvez até entendamos essa ideia e aí passemos a acreditar que, somando a esse entendimento capenga o fato de frequentarmos um suposto Dojo, possamos considerar que estamos praticando Budo, porém, como dito acima, é preciso pôr em prática a ideia de caminho e o imediatismo do ocidental é um obstáculo.

Voltando à questão do seu significado, dependendo da abordagem, a utilização da expressão Karate budo é uma contradição em si mesma. Afirmo isso porque para muitos a arte do Karate-Do não se inclui nas artes do Budo. Surpreso? Vejamos algumas informações. (FILHO & MONTEIRO, 2015) diz que:

Apesar de não surgir dentro do território japonês, o Karate-Dō veio a se desenvolver, de forma fundamental, também através das trocas culturais com imigrantes japoneses que se estabeleciam em Okinawa7,9. Aliado a diversos outros esforços, tal característica pode ter facilitado o registro da arte como um Budō. No entanto, isso fez com que, em certas ocasiões, o Karate-Dō não fosse reconhecido como uma verdadeira arte marcial japonesa7,16-17. Com a fundação da Dai Nippon Butoku-kai, toda arte marcial deveria ser registrada na instituição e seguir suas normas para tornar-se um Budō, desde que fosse uma antiga disciplina marcial japonesa. Não era esse o caso do Karate-Dō, arte trazida de uma ilha com fortes influências chinesas. Um dos aspectos desse novo período é que as antigas técnicas de luta, que utilizavam o termo Jutsu em seu nome, deveriam passar a utilizar o sufixo em substituição (Kenjutsu passa a ser Kendō, por exemplo)8-9,16. O Karate-Dō nem mesmo consta na lista da instituição referente a essas antigas técnicas guerreiras; aparece diretamente com sua nomenclatura atual18. Conforme observado, a situação do Karate-Dō enquanto Budō, à época de seu registro oficial, desenrolou-se de forma um tanto diferente das demais práticas. Isso, aliado a toda sua história prévia, reforça a característica multicultural da arte e coloca-se contrário a certos entendimentos, os quais posicionam o Karate-Dō como uma “genuína construção cultural japonesa”, conforme já salientado pelo antropólogo Kevin Tan8 (p.169).

No mesmo sentido, diz (FROSI & MAZO, 2011):

No Japão, a partir da Restauração Meiji, que modernizou o país, diversas mudanças políticas e sociais ocorreram. Para o mundo das artes marciais, a fundação da Dai Nippon Butokukai61, uma instituição japonesa voltada para o desenvolvimento das artes marciais, foi um grande marco. A partir de seu estabelecimento, toda disciplina guerreira tinha que ser registrada nessa fundação e seguir certas normativas, como por exemplo, a adoção da graduação kyū/dan e o uso do dōgi branco. A partir desse registro a arte poderia ser reconhecida ou distinguida como Budō, desde que fosse uma antiga arte tradicional japonesa que antes se nomeava a partir do sufixo Jutsu. Como o Karate nunca foi uma arte tradicional japonesa e, portanto, não teve o sufixo Jutsu como parte de seu nome, nunca foi reconhecido como Budō (uma arte tradicional japonesa), apesar de ter sido reconhecida e registrada na Butokukai através dos esforços de Gichin Funakoshi (ANDRETTA, 2009; STEVENS, 2005). Cabe lembrar também que todas as artes japonesas sem exceção sofreram mudanças neste período, abandonando os nomes antigos e adotando os novos juntamente das novas diretrizes e preceitos. Assim o Jūjutsu tornou-se Jūdō, o Kenjutsu tornou-se Kendō,

Assim, vejamos e reconheçamos, mesmo que acreditemos, e de forma cega, pelo fato de não conhecermos melhor esse assunto, o que fazemos pode não ser Budo. Como assim?

Em primeiro lugar, como vimos, “Do modo como é manifestado em Budo, o caminho não é nem arcaico nem místico”, ou ainda, “Budo não é uma réplica das artes marciais como praticadas pelos guerreiros do passado”, ou seja, quando vamos a um Dojo ou pelo menos a algo que cremos ser um, e ali fazemos reverências aos colegas, ao sensei e ao senpai, como que numa prática mística misturando formas de etiqueta japonesa com pronúncia de palavras em japonês e achando que estamos dentro de um templo budista ou xintoísta, ou ficamos praticando os exercícios imaginando que aquela é a forma arcaica praticada no Japão feudal – o que já é um erro, pois no Japão feudal não havia Karate -, não estamos praticando Budo, pois ele nem é arcaico nem místico.

Uma outra forma de nos enganarmos sobre a prática do Budo é achar que simplesmente por estarmos praticando Karate, uma coisa que vem lá do Japão, estamos automaticamente praticando Budo. Praticar Karate simplesmente por achar bonito, sem um objetivo mais elevado quanto ao crescimento da mente, do intelecto e do espírito, não é Budo.

Outro ponto é que, sim, o Budo é uma busca realizada por meio da prática física de alguma coisa e essa coisa, no caso, são as artes marciais, portanto, pode-se pensar que, simplesmente por estar praticando algo físico, e mais, uma arte marcial que está incluída no Budo, já se está praticando Budo. Acompanhando o raciocínio anterior, apesar de ser uma prática física e de ser uma arte marcial japonesa, não quer dizer que seja Budo. Muitos praticantes são conhecidos pela excelente perícia, mas também pelo desrespeito aos colegas, inclusive dentro do Dojo. Certamente, alguém assim não pratica Budo, pois aí não há crescimento mental nem espiritual. O que importa não é a prática, mas a forma como se pratica.

Pois é, parece que muitos karateka acham que praticam Budo por meio do Karate e não chegam nem perto, outros acham que não praticam Karate budo porque isso é o Karate antigo (porrada) e hoje isso está muito restrito a alguns poucos sensei antigos, sendo que praticam muito mais que muitos que acreditam praticar. Mas como poderíamos, diante da nossa pequenez frente a este assunto, tentar definir o que é Karate budo, se é que isso é possível?

Sabemos o que é Karate e podemos dizer que, de alguma forma, chegamos perto de entender o que é Budo, mesmo diante das pobres colocações deste texto.

Primeiramente, gostaria de, mais uma vez, me valer do texto de Kenji Tokitsu, quando ele afirma de maneira bem ponderada:

Quando as pessoas falam sobre o espírito da prática do kendo, judô ou karate, muitas vezes usam uma qualificação adicional, ligada pela palavra como. Por exemplo, kendo (judô, karate) como esporte competitivo ou kendo (judô, karate) como budo.

Notemos que, quando passamos a entender que o Karate ou qualquer outra arte marcial japonesa podem ser praticados com objetivos voltados ao Budo ou não, é preciso fazer como nos alerta o autor citado, ou seja, procurar nos expressarmos de uma forma que façamos entender que nas artes marciais japonesas pode ou não haver Budo.

Quando usamos a expressão Karate budo, podemos dar a impressão de que há um Karate que é Budo e outro que não é. Na verdade, é melhor entendermos que o Karate pode ou não ser praticado como Budo. Portanto, prefiro aqui tentar definir, na minha pobre opinião, como é o Karate praticado como Budo.

O Budo em si não tem (pelo menos que eu saiba) princípios escritos e delimitados como um lema, assim como o Dojo Kun ou o Ni ju Kun do Karate-Do Shotokan[2]. É como algo implícito na cultura japonesa e que anda paralelamente à filosofia do Do – também sem princípios escritos, até onde sei -, buscando que o praticante, por meio da prática ascética, persiga uma elevação em sua moral durante o trilhar do caminho (Do). Podemos dizer que o Budo e o Do andam juntos.

 

Dojo Kun [3] Budo [4]

Os princípios morais do Karate-Do foram elaborados por professores que tiveram grande influencia filosófica das religiões mais praticadas no Japão, o Budismo e o Xintoísmo. Gichi Funakoshi, particularmente, pode ter dado uma contribuição diferenciada, pois recebeu educação esmerada tendo sido letrado em clássicos da literatura chinesa (FUNAKOSHI, 2010). Esses princípios, por si já seriam suficientes para nortear a conduta dos praticantes no sentido de atingir a elevação moral almejada pelo Budo, porém, estando inseridos no contexto do Budo, passam a ser parte deste e aceitos por este como princípios norteadores, ou seja, para que o praticante esteja praticando Karate como Budo, é preciso que ele esteja sempre perseguindo o cumprimento do Dojo Kun e do Ni Ju Kun, pelo menos – mas não suficientemente - dentro do Dojo.

No dia a dia do Dojo (numa tradução possível, o “local de prática do caminho”) nos são dadas várias oportunidades de se aperfeiçoar no Budo. O esforço para evitar expressões de egoísmo, a procura por se manter firmes no caminho filosófico do Karate-Do, a tentativa da superação física e mental a cada treino, o sentimento de respeito que deve ser mantido e o autocontrole na prática das técnicas traumáticas, são objetivos que podem levar à prática do Budo.

Nesse sentido, acredito – apesar de já ter ouvido que os princípios morais do Karate-Do são uma fantasia e que não devem ser incentivados, pois muitos o repetem e não o praticam – que o karateka está na direção do Budo na medida em que ele procura praticar os princípios contidos no Dojo Kun e no Ni Ju Kun, como já disse, pelo menos dentro do Dojo.

Certamente que ao se esforçar para praticar os princípios morais dentro do Dojo, esse comportamento será refletido na vida lá fora e a pessoa vai estar levando para a vida os ensinamentos do Karate como Budo, caso contrário, os únicos ensinamentos que ele levará serão as técnicas de luta ou de competição.

Eis a nossa singela contribuição para este assunto.

Oss!

 

 

Obras Citadas

1.    FILHO, B. J., & MONTEIRO, A. d. (2015). A simbologia presente nos estilos de Karate-Do. Revista Brasileira de Educação Física, 13.

2.    FILHO, F. D. (2015). Corpo, mente e espírito no contexto da arte das mãos vazias: a efetiva contribuição do karate-do shotokan a essas dimensões do ser. Natal, RN, EDUFRN.

3.    FROSI, T. O., & MAZO, J. Z. (2011). Repensando a história do karate contada no Brasil. Revista brasileira de Educação Física, 16.

4.    FUNAKOSHI, G. (2010). KARATE-DO, O meu Modo de Vida. São Paulo: Cultrix.

5.    TOKITSU, K. (2012). Ki e o Caminho das Artes Marciais. (L. C. Cintra, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.





[1] Uma tradução possível para o termo Budo.

[2] Disponível em: <https://www.jkabrasil.com.br/karate-jka/filosofia/>, acessado em: 07/03/2021.

[3] Disponível em: <https://www.google.com/search?q=dojo+kun+jka&tbm=isch&ved=2ahUKEwir4Nyahp_vAhW8BbkGHbcxBbsQ2-cCegQIABAA&oq=dojo+kun+jka&gs_lcp=CgNpbWcQAzIECAAQEzoCCAA6BAgAEEM6CAgAEAgQHhATOgYIABAeEBNQjPwEWNn_BGCUhwVoAHAAeACAAZ0BiAGuBJIBAzAuNJgBAKABAaoBC2d3cy13aXotaW1nwAEB&sclient=img&ei=QDtFYKvAB7yL5OUPt-OU2As&bih=625&biw=1366#imgrc=aOhNTWHgn6La5M>, acesso em: 07/03/2021

[4] Disponível em: <https://www.google.com/search?q=budo&tbm=isch&ved=2ahUKEwjy3L_4iZ_vAhXaB7kGHYCfAGQQ2-cCegQIABAA&oq=budo&gs_lcp=CgNpbWcQAzIFCAAQsQMyBQgAELEDMgIIADIECAAQQzICCAAyAggAMgIIADICCAAyAggAMgQIABBDOggIABCxAxCDAVDtqw9Y0LEPYIXHD2gAcAB4AIABpgGIAcoEkgEDMC40mAEAoAEBqgELZ3dzLXdpei1pbWfAAQE&sclient=img&ei=Kj9FYPKfBdqP5OUPgL-CoAY&bih=625&biw=1366#imgrc=Vo0UcPWA_15JIM>, acesso em 07/03/2021


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