O Karate-Do e sua filosofia transmitida de forma oral

O KARATE-DO E SUA FILOSOFIA TRANSMITIDA DE FORMA ORAL[1]


Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 09/03/2022

Finalizado e publicado em 09/10/2022

Mais uma vez, fazemos uma reflexão a respeito de aspectos sócio antropológicos do Karate. Agora, procuramos pensar sobre como os conhecimentos teóricos e filosóficos do Caminho das Mãos Vazias são transmitidos entre seus praticantes, especialmente no Brasil: por meio de escritos? oralmente? pelas duas formas? qual a mais eficiente? No meio de toda a discussão que aqui desenvolvemos, surge uma outra possibilidade de transmissão da chamada filosofia do Karate-Do, a demonstração.

Como referido no texto (SILVA, Diáspora, anacronismo e tradição no Karate, 2022), o Karate sofreu várias modificações ao longo do tempo e muitas delas se deram em decorrência das suas viagens pelo mundo. Nessa grande aventura da cultura japonesa mundo a fora, ela soube se manter viva, mesmo fora do Japão, na medida do possível, e essa sobrevivência se deve, claro, à forma como foi preservada.

Tal preservação não se deu como se essa cultura fosse um livro fechado por décadas e que, sendo reaberto um dia, mostrou algo intacto e que passou a ser usado anacronicamente, sem transformações. Na verdade, ela se deu na prática, ocorrendo junto com as coisas de cada tempo. No caso específico do Karate (como já afirmamos em outros textos de nossa autoria, uma expressão da cultura japonesa), essa prática foi fundamental para sua (da cultura japonesa) expansão, e também foi o veículo para as mudanças que ocorreram ao longo do tempo.

Analisando daqui de longe - uma vez que o fato ocorreu há mais de um século - a situação da chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, uma situação certamente precária conforme (IBGE, A identidade japonesa e o abrasileiramento dos imigrantes, s.d.), imaginamos que eles não trouxeram em sua bagagem muitos livros e, principalmente, livros sobre Karate, até porque, pelo que sabemos, não havia ainda literatura sobre isso. Claro que não estou afirmando que não havia literária sobre as artes marciais japonesas ou okinawanas, pois sabemos que elas existem há séculos[2], mas nos referimos aqui a uma literatura específica sobre Karate, vinda, inclusive de Okinawa, de onde veio essa arte marcial. Faço essa afirmação tendo como referência que o primeiro livro sobre este assunto escrito por Gichin Funakoshi foi publicado em 1922[3] e que temos como marco do início da imigração de japoneses ao Brasil o ano de 1908.

Devemos considerar, porém, a possibilidade de alguém ter escrito sobre Karate no Japão antes de Funakoshi e, dessa forma, se abriria a possibilidade de alguém ter trazido algo para o Brasil, mas acho improvável. Aí já começamos a entender como os conhecimentos do Karate foram transmitidos até o Brasil e nele disseminados: oralmente, ou, usando uma expressão mais popular, pelo boca a boca.

Reforçamos esta nossa ideia (a da ausência de documentos ou livros sobre o Karate já nessa época do início da imigração) com o fato de que os primeiros japoneses praticantes de Karate do Brasil não vieram para cá com a finalidade de ensinar essa arte, mas de trabalhar em diversas outras áreas, sobretudo na agricultura (IBGE, Inserção no mundo do trabalho, s.d.), porém, algumas pessoas, tendo esse conhecimento e praticando entre eles, começaram a ensinar Karate como um meio de vida ou de manter viva sua própria cultura. Nesse sentido, é importante que se diga que foi desenvolvida uma prática de Karate Shotokan no Brasil, porém, somente na década de 1970 chega ao Brasil Taketo Okuda sensei, o primeiro enviado da Japan Karate Association (JKA), autorizado por Masatoshi Nakayama sensei para representar a arte marcial no nosso país. Não conseguimos chegar a uma data exata da chegada de Okuda sensei, mas em (SANDALL, 2012), há a informação de que ele teria chegado em 1972.


Fonte: (IBGE, Inserção no mundo do trabalho, s.d.)

Uma característica que os japoneses possuem e que dificultou sua aceitação aqui no Brasil no início do século XX foi, conforme (IBGE, A identidade japonesa e o abrasileiramento dos imigrantes, s.d.), a sua tendência e costume de não se misturar ou se miscigenar com outros povos, neste caso, o brasileiro, mantendo o mais que possível intactos seus traços culturais, o que ia de encontro com o chamado “ideal do branqueamento”, política (de Estado) vigente fortemente naquela época, ou seja, quanto menos os não europeus permitissem uma miscigenação (caso dos japoneses), mais tempo levaria para que a raça branca, os europeus – que conforme o ideal do branqueamento era superior e acabaria por extinguir do Brasil todas as outras raças – fizesse seu trabalho de limpeza étnica. Porém, acreditamos ter sido essa característica dos japoneses um dos fatores que ajudaram na preservação dos seus costumes dentro de um Brasil altamente preconceituoso e com um forte sentimento anti-imigração, sem falar, culturalmente diverso - e em alguns pontos podemos até dizer antagônicos - dos japoneses.

Portanto, acreditamos que entre esses traços de forte identidade do povo japonês trazidos para nossas terras estava o Karate e, como já afirmamos, não foi trazido por meio de livros, mas dentro das pessoas, em suas mentes, em seus corpos, enfim, em seu espírito japonês. Assim, no que coube ao Karate, a filosofia foi ensinada, preservada e transformada ao longo das décadas, sempre por meio da oralidade e da demonstração.

Sabemos que há recursos que possibilitam a documentação e o registro das técnicas e dos costumes que fazem parte da arte, inclusive há livros que preservam parte importante dela e que muitos professores desenvolvem suas apostilas, mas, incontestavelmente e até inconscientemente, os professores recebem os conhecimentos nos anos e anos de treinamento e os transmitem da mesma forma, ou seja, oralmente, com raras exceções, a seus alunos, e esse método de propagação/preservação vai se repetindo e se mantendo geração após geração. E reforçamos esse caráter de exceção, uma vez que não é tido como um sistema de ensino no - ou do - Karate, sendo, portanto, de iniciativa individual de cada sensei a adoção de uma forma mais concreta de ensinar as filosofias que compõem o Caminho das Mãos Vazias.

Apesar de haver livros - e as professoras e os professores certamente sabem disso - eles parecem não querer fazer uso deles ou, pelo menos, não demonstram que o fazem ou que um dia fizeram, ou seja, não falam sobre eles nas aulas. Mesmo reconhecendo que este comportamento tem mudado visivelmente ao longo dos últimos anos, em que as/os sensei tem escrito e consumido cada vez mais livros sobre o Karate, muitos dos atuais sensei ainda parecem ter algo “contra” os livros que falam sobre Karate, apesar de as obras mais clássicas dessa literatura terem sido escritas pelos próprios japoneses, o que deveria ser um indício de autoridade e prestígio no assunto[4]. Acreditar apenas no que a/o sensei diz é, claro, uma questão de respeito, mas passa a ser apenas uma questão de fé e apego, quando a pessoa sabe que além do que ele ou ela nos diz há outras fontes muito mais antigas e profundas.

Esse comportamento de não dar crédito às fontes registradas das filosofias que embasam o Karate-Do, me dá a impressão de que as pessoas parecem querer mostrar que o conhecimento que possuem vem de si mesmos, mas, como assim? É que o Karate é - como muitas das coisas em que nos especializamos - algo que o praticante aprende com sua professora ou seu professor durante anos e, ao longo desse tempo, ele vai desenvolvendo uma forma particular de praticar e muitos chegam a se desligar de seus instrutores e passam a ser autônomos, havendo, porém, os que passam a vida toda praticando com o mesmo professor ou professora, ou que atribuem seus conhecimentos a essas pessoas.

Nessa busca por seu próprio Karate, vão dando cada vez menos importância às fontes de suas habilidades (seus sensei), e passam a andar com as próprias pernas. Assim, parece que vão procurando dar cada vez mais a impressão de que o Karate brotou de si, como se fosse algo que veio ao mundo consigo em seu próprio ser, pois se afastam e muitas vezes negam que tenham aprendido com alguém - o que é uma forte expressão das diferenças da nossa cultura em relação à dos japoneses, uma vez que, naquele país, é fortíssimo o costume de venerar os antepassados e os professores, sendo muito comum nos dojo de artes marciais haver uma ou mais fotografias ou caligrafias dos antepassados em exposição permanente.

Porém, alguém lhes passou pelo menos as primeiras técnicas, os primeiros conhecimentos teóricos - mesmo que não muito exatos - para que pudessem, lá na frente, andar sozinhos, e certamente, esses conhecimentos lhes foram passados pela prática e pela oralidade e dificilmente seguiram algum livro ou alguma apostila para essas coisas - lembrando que refiro-me aqui à parte teórico/filosófica do Karate-Do e não à sua prática. Quando muito, fizeram-lhes consultas e, depois, seguindo a tradição da oralidade, chegaram no dojo “contando histórias”, sem citar a fonte dos seus conhecimentos e, muitas vezes, nem sabendo.

O que queremos afirmar aqui é que são notáveis as limitações de se transmitir conhecimento apenas por meio da oralidade e que isso atinge fortemente a parte filosófica do Karate, especialmente no Brasil, por conta dos contrastes culturais. Em (CALDEIRA, 1988), a autora fala sobre as dificuldades em transmitir e recolher com segurança informações preservadas apenas por meio da oralidade:

Primeiro problema: memória oral sobre um evento que ocorreu há mais de dois séculos e cujas informações só se mantêm de modo fragmentário. [...] Ao escrever First-Time Price teve, então, que enfrentar uma série de questões impostas pelo próprio objeto de análise. Ele teve que descobrir a forma cultural específica — canções, lendas, histórias, encantamentos ditos eventual e ritualisticamente — pela qual o conhecimento sobre o passado é transmitido. Ele teve que lidar com a memória dos Saramakas e com documentos sobre a sua história, com diferentes versões sobre o passado e a impossibilidade de dizer o que ele realmente foi.

No nosso caso, não se trata de reconstruir o passado do Karate, e sim, de repassar conhecimento filosófico à frente por meio da oralidade, o que é tão precário quanto a reconstrução do passado quando feito por meio desse método. Toda essa discussão está mais aprofundada num texto de um trabalho acadêmico que realizamos e que, apesar de não ser nada muito complexo e carecer de aperfeiçoamentos e aprofundamento, publicaremos em breve. Assim, não vamos nos estender mais aqui para que não sejamos repetitivos.

O texto contou com a colaboração de alguns professores de Karate, a quem sou muito grato. Ficam, portanto, algumas perguntas que serão abordadas no citado trabalho acadêmico que em breve publicarei: é eficiente repassar a chamada filosofia do Karate apenas oralmente para os alunos? Será que as pessoas que resolvem repassar essa filosofia têm o domínio sobre ela? Como aprenderam? De que outras formas esses conhecimentos podem ser repassados de maneira mais eficiente? Existe realmente, uma filosofia do Karate?

Oss!

Fontes citadas

1.      CALDEIRA, T. P. (1988). A presença do autor e a pós-modernidade em Antropologia. Novos Estudos, 133-157. Acesso em 08 de 10 de 2022

2.   FROSI, T. O., & ZARPELLON, J. M. (Abril de 2011). Repensando a história do Karate contada no Brasil. Revista Brasileira de Educação Física, 297-312. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em https://www.scielo.br/j/rbefe/a/gnJLbYyVVtgcP9hq8LyjdsG/abstract/?lang=pt

3.   IBGE. (s.d.). A identidade japonesa e o abrasileiramento dos imigrantes. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/japoneses/a-identidade-japonesa-e-o-abrasileiramento-dos-imigrantes.html

4.   IBGE. (s.d.). Inserção no mundo do trabalho. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/japoneses/insercao-no-mundo-do-trabalho.html

5.   SANDALL, J. (08 de Janeiro de 2012). Sensei Taketo Okuda. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Karate JKA: http://karatejka.blogspot.com/2012/01/sensei-taketo-okuda.html

6.   SILVA, H. P. (28 de 02 de 2021). A obra de Nakayama sensei (um clássico) está ultrapassada? Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/02/a-obra-de-nakayama-sensei-um-classico.html

7.   SILVA, H. P. (11 de 05 de 2021). Karate: Jutsu? Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/05/karate-jutsu.html

8.   SILVA, H. P. (27 de Fevereiro de 2022). Diáspora, anacronismo e tradição no Karate. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2022/02/diaspora-anacronismo-e-tradicao-no_27.html

 

 



[1] A escrita deste texto se iniciou em 09/03/2022 e foi interrompida por conta da falta de tempo, e uma das coisas que consumia este tempo era a faculdade de Ciências Sociais. Numa de suas disciplinas estudamos, coincidentemente – ou não -, a questão da oralidade na transmissão do conhecimento e questões que envolveram as dificuldades da imigração japonesa no Brasil. Realizamos um pequeno trabalho de pesquisa que contou com entrevistas concedidas por professores e alunos de Karate-Do, e alguns com quem pretendíamos contar ficaram de fora por conta de diversos fatores.

Agora temos dois textos tratando do mesmo tema e escritos em épocas e sob influências diferentes. Todo texto é influenciado por outros textos e agora que aquele está pronto, não sei se este o influenciou mais ou se aquele influenciou mais este, uma vez que a escrita dos dois se revezou no mesmo espaço de tempo. De qualquer forma, publicarei os dois, primeiro este, depois aquele.

[2] Sobre isto, (FROSI & ZARPELLON, 2011) traz interessantes informações a respeito de disputas entre clãs no Japão feudal envolvendo “rolos de papiro contendo descrição de técnicas secretas”.

[3] Damos melhores informações sobre isto em (SILVA, Karate: Jutsu?, 2021).

[4] Sobre este assunto escrevemos (SILVA, A obra de Nakayama sensei (um clássico) está ultrapassada?, 2021)


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