Essa coisa que chamam de Karate

 ESSA COISA QUE CHAMAM DE KARATE

 

Humberto Pereira da Silva

Natal/RN, 11/08/2021

 

Como não poderia deixar de ser, o assunto é a participação do “Karate” nas olimpíadas do Japão. Já que não tenho propriedade para isso, não vou fazer uma análise da breve passagem dessa modalidade pelas olimpíadas – breve, já que, pelo que está posto, o “Karate” não estará na próxima edição dos jogos. O que pretendo fazer são colocações pessoais sobre o bizarro resultado da final do kumite na categoria +75kg[1] e suas implicações.
Notem que quando for utilizada aqui a palavra “Karate”, assim, entre aspas, será porque ela estará se referindo a algo que difere do Karate ou Karate-Do, a arte marcial.
É importante que se coloque, logo aqui no começo, que não sou contra a prática do que vou chamar de “karate esportivo”. O desagrado que expresso aqui não é com essa modalidade esportiva em si, mas sim com o fato de que se vende – e caro – a ideia de que isso que se pratica dentro de regras esportivas, com nome, uniforme – inclusive com um nome (kimono) que é um equívoco que parece incorrigível, mas que vende bem –, graduações, movimentos formais (kata) e nomenclatura dos golpes de Karate é Karate.
Ora, todos que praticamos tanto uma como outra forma de Karate, ou seja, a forma esportiva (voltada para, e somente para as competições esportivas) ou a forma não esportiva, sabemos que são duas coisas diferentes e que a forma esportiva tomou um caminho tão próprio, já anda tanto com as próprias pernas, já tem uma vida tão afastada das origens do que veio de Okinawa, que fica difícil entender porque não tratá-las como coisas diferentes e com nomes diferentes.
Outro motivo do desagrado deste que escreve é o fato da desvalorização da arte marcial nascida em Okinawa que foi levada para o Japão, diante do karate esportivo, uma vez que o que não gera dinheiro na atual sociedade em que tudo tem base e lógica capitalista é desvalorizado. Temos que fazer parte de uma entidade devidamente registrada e pagar todas as suas taxas para existirmos. Ultimamente, fiquei sabendo que quem não está filiado a uma entidade que se arvora de ser a representante oficial do Karate no Brasil, mesmo estando em outra entidade esportiva, recebe a alcunha de clandestino. Imagine quem não quer se filiar nem a uma nem a outra entidade e quer apenas praticar um Karate livre da politicagem que o domina atualmente! Qual denominação deve recebe?
Mas, como tudo isso está ligado à participação do “Karate” nas olimpíadas do Japão?
A exposição provocada pela participação de um esporte em uma ou várias edições de olimpíadas, gera na coletividade do planeta todo uma impressão sobre ele e essa passa a ser a dominante, claro. Vimos os efeitos tão benéficos sobre as novas modalidades que obtiveram seu lugar dentro das olimpíadas e citamos o belo exemplo do Skate. Aquela visão geral de que esse esporte é coisa de vagabundo foi muito apagada após a primeira participação nos jogos. Outros como o Surf, tiveram e continuarão tendo um crescimento muito grande mundo a fora. Com o “Karate”, porém, o efeito, acredito, está sendo outro.
Porém, é preciso que vejamos que há públicos e públicos atingidos pela exposição nas olimpíadas. Há o público que entende de Karate – ou já o pratica - e o que não entende. Para a primeira parcela o efeito será um e para a segunda será outro. Notemos que o efeito que se fará sobre o público que não entende de Karate terá grandes consequências sobre a modalidade, uma vez que é ele que será atraído e virá com as impressões provocadas pelo que os jogos lhe mostraram.
Sobre os que entendem ou, pelo menos, já praticam o “Karate” ou o Karate, o efeito deverá ser o de provocar reflexões e mudanças na sua prática e, sobretudo, nas suas regras – espero.

Fonte: https://ge.globo.com/olimpiadas/video/na-final-tareg-hamedi-e-desclassificado-por-deixar-sajad-ganjzadeh-desacordado-com-golpe-9749383.ghtml
Então, tentemos antever também o que um público que não entende de Karate virá buscar após os jogos olímpicos. Na nossa opinião, o efeito do que foi mostrado nesses jogos, principalmente pela final da categoria +75kg, em que o atleta que golpeou o oponente foi desclassificado, não será bom para a arte marcial. Como alguém que não entende as regras esportivas dessa modalidade pode entender o que aconteceu ali? Tudo bem, me parece que tanto a transmissão da tv como os inúmeros produtores de conteúdo para a internet explicaram que, pela regra, o golpe – que não foi violento – teve excesso de força e aí, o leigo entende que a desclassificação ocorreu porque houve excesso de força. Ok. Mas é aí que mora o perigo para o Karate que não busca marcar pontos e sim ensinar seus praticantes a se defenderem – se é que ele ainda existe -, pois o grande público já acredita que aquilo que as olimpíadas mostraram é a representação de uma arte marcial.
Tem uma história que ocorreu comigo no ano de 2014, se não estou enganado, que mostra muito bem essa visão disseminada sobre o Karate: ocorreu que, no meu trabalho, as pessoas ficaram sabendo que eu praticava Karate e um colega, conversando comigo, me perguntou se “Karate é aquela luta em que as pessoas não podem se tocar”. Imagine que naquela época não havia ocorrido uma olimpíada em que o vencedor da luta foi o derrotado porque o adversário tocou no seu rosto com o pé, que é protegido por uma almofada, e que esse toque não teve a intensão de machucar o adversário, mas sim, de marcar o ponto com o contato controlado e depois do contato o pé foi puxado de volta num movimento rápido. Agora, imagine que atualmente houve uma olimpíada e que esse fato ocorreu. Qual a impressão que o público leigo vai ter potencializada sobre o Karate se antes disso ele já acreditava que no Karate não pode haver contato?
Ora, por esses motivos e pelo fato de que o tempo passa e surgem naturalmente ramificações nas coisas originais e que essas ramificações se tornam tão diferentes que se torna preciso que se separem as coisas, como foi levantado antes, é que é necessário que se deem a elas nomes apropriados para que se desfaçam as confusões. Isso acontece frequentemente, por exemplo, nas religiões e suas seitas.
Porém, tem gente que faz que não vê, talvez porque agora fica muito claro que a arte marcial surgida em Okinawa é uma coisa e a prática esportiva dentro de regras que limitam tanto os golpes que um golpe perfeito chega a ser considerado uma falta tão grave a ponto de desclassificar o praticante, é outra.
Quem sabe, as expressões “karate esportivo” ou “karate olímpico” possam ser utilizadas com sucesso, para que se faça essa separação entre essas duas coisas com origem comum, mas tão diferentes. Inclusive, elas já são utilizadas por muitos. Essa ideia batida de que “o Karate é um só” é muito inadequada. Os jogos olímpicos estão aí para provar que se isso fosse verdade, o “Karate” teria seu lugar garantido. É justamente pela desorganização e existência de vários “karates” que ele – ou eles – não tem direito de participar dos jogos. Nas palavras do Sr. Liviu Crisan, “A triste realidade é que, internacionalmente, o Karate não fala com uma só voz”. E o presidente da Word Karate Federation – WKF, afirma ainda que “A situação atual em todo o mundo é, infelizmente, de divisão”. [2]
Ainda na questão dos possíveis nomes para as duas coisas diferentes, poder-se-ia utilizar a expressão “karate tradicionalpara designar um Karate que busca ser mais próximo de uma arte de defesa pessoal, na tentativa de se realizar uma diferenciação com o que chamo de karate esportivo. Mas alguns que se referem ao chamado “karate tradicional como sendo ele uma arte marcial, não lembram que todo o conjunto de práticas desenvolvidas nesse seguimento está dentro de regras esportivas e que muito pouco – quase nada na verdade - se ensina de defesa pessoal nos seus treinamentos – sim, acredito que para que uma coisa seja chamada de arte marcial é necessário que ela ensine os praticantes a se defenderem -, a não ser socos, chutes e rasteiras e que, quase sempre, são aplicações fantasiosas dos kiodo dos kata. Portanto, o uso da nomenclatura “karate tradicional” para a finalidade acima seria mais um problema que uma solução, pois seria necessário que as técnicas praticadas por essa vertente não se dedicassem a competições meramente esportivas, mas, apenas ou sobre tudo, a estudar, preservar e praticar, dentro dos limites que o tempo atual impõe, a arte marcial Karate, principalmente, mas, não somente, o da escola Shotokan. Outro problema seria enfrentar a questão de que essa nomenclatura já é utilizada não por uma, mas por várias entidades de “Karate” que acreditam, cada uma, estar na posse do verdadeiro Karate-Do.
Apesar de isso ser um outro assunto, faz parte do contexto, uma vez que a pretensão de que se esteja aí – no âmbito desse tal “karate tradicional” - preservando a arte marcial, não é atingida e o objetivo é a prática esportiva com um pouco mais de realismo no aspecto da troca de golpes, mas, ainda, dentro de regras que limitam e fazem ser esquecidas as reais técnicas de defesa pessoal ou mesmo golpes mais traumáticos como joelhadas e cotoveladas, entre outros – que até são praticadas, mas, contra o vento, uma vez ou outra nos treinos de kihon. Tanto é assim que se um praticante resolve treinar e aplicar esses golpes ou mesmo treinar com os braços em guarda ao lado do rosto, corre o risco de ser acusado de não estar treinando Karate, mas outra luta, que por praticar essas coisas, se torna mais eficiente que ele.
Fechando esse raciocínio, é curioso ver que, até mesmo a impenetrável ITKF (International Traditional Karate Federation), entidade que representa a nível mundial o chamado Karate Tradicional, parece agora estar se engajando na busca que ocorre por manter o “Karate” como esporte olímpico, inclusive, se mostrando mais flexível a aceitar parâmetros de outras entidades – coisa quase inimaginável antes dessas olimpíadas -, nas palavras do Sr. Gilberto Gaertner, presidente da entidade:[3] “A ITKF também está pronta e disposta para discutir uma proposta de unificação supra institucional e compreensiva visando o futuro do Karate como um esporte olímpico eficaz”. Sinais dos tempos.
Sempre se compara o que acontece ao que chamo de karate esportivo com o que acontece com os outros esportes de luta, ou seja, eram artes marciais e passaram a ser apenas esportes. Independentemente de como ocorreram os diferentes processos de adaptação às coisas de cada tempo, ou seja, essas artes foram, pela força das coisas, adquirindo aspectos mais esportivos/educativos e deixando cada vez mais para trás o aspecto marcial, elas mantiveram seus nomes adquiridos após a abertura do Japão, mesmo tendo ocorrido mudanças posteriores que poderiam suscitar a utilização de  nomenclaturas distintivas entre as formas de praticar a mesma arte, ou seja, formas esportivas e formas não esportivas.
Essas mudanças ocorridas nas artes japonesas, como sabemos, ocorreram de forma mais ou menos organizada e as artes marciais que antes serviam para a aplicação em guerras passaram a servir a propósitos educacionais do povo japonês, porém, sempre existiram aqueles que procuraram preservar as raízes dessas artes e se afastar das competições meramente esportivas, perpetuando os valores morais, espirituais, mentais e marciais.
Com essas artes ocorreu mais o menos o mesmo problema ocorrido com o Karate em relação ao nome da arte ter se mantido, mas não suas técnicas. Mesmo passando a servir a propósitos educacionais, também havia a intenção de preservar os conhecimentos antigos, ainda que sem a necessidade da utilização em guerras, mas, com poucos praticantes que se dediquem a isso sem se deixarem influenciar pelo mundo das competições, essas técnicas foram se perdendo.
Algumas artes conseguem manter-se como protetoras das técnicas mais antigas, como é o caso do Aikido, na medida do possível, uma vez que, naturalmente, nem tudo dos tempos das guerras foi preservado. Outras como o Judô e o Jiu Jitsu praticam muitas técnicas de defesa pessoal em suas competições, mas, evidentemente, com restrições. São situações parecidas com a do Karate-Do. Portanto, elas passaram a exercer outras funções com os mesmos nomes e parece que isso não é um problema, inclusive elas conseguem atingir um certo nível de organização mundial. Por que, então, para o Karate é um problema manter-se com o mesmo nome, a ponto de, a todo momento, se ouvirem coisas como “isso não é Karate”?
Acredito que com o Karate-Do ocorreram mudanças tão grandes para atender às necessidades das competições, com o objetivo de preservar a integridade dos atletas que em lutas com poucas restrições de golpes saiam muito machucados e até mesmo – e frequentemente – hospitalizados, que o desfiguraram totalmente, bastando para constatar isso fazerem-se duas coisas: uma, comparar as lutas de décadas atrás com as de atualmente e, outra, pedir aos competidores que demonstrem algumas técnicas de defesa pessoal com base no estudo dos kata.
Assim, é necessário que se considere que essa coisa que chamam de Karate, precisa ser designada por um nome que a diferencie da arte marcial, tanto para que fique clara essa distinção, para todos, atletas e público leigo, como para que não se criem preconceitos entre os praticantes das duas formas, uns com os outros, mesmo que isso não tenha sido feito ainda com outras artes marciais com situações parecidas. O Karate Tradicional – refiro-me à International Traditional Karate Federation (ITKF) - buscou realizar essa diferenciação, mas é preciso aperfeiçoá-la para que haja uma distinção mais ampla e não apenas de uma única entidade que se coloca, por essa auto nomeação, em posição de destaque em relação às outras, quando faz praticamente a mesma coisa que elas.
Mesmo que se consigam as condições para que o “Karate” obtenha um lugar mais permanente nos jogos olímpicos, condições essas que passam por uma centralização desse esporte em poucas entidades representativas ao redor do mundo, o que vai causar ainda mais engessamento dessa coisa que chamam Karate, a arte vinda de Okinawa vai continuar ali, andando com suas pernas já cansadas e recebendo as alcunhas de quem luta contra a ventania como fez um lendário professor de Karate na ilha mãe dessa arte, como está descrito no capítulo Treinamento para a Vida Toda – Contra um Tufão, em (FUNAKOSHI, 2010).
Oss!

 

Fontes

1. FUNAKOSHI, G. (2010). KARATE-DO, O meu Modo de Vida. São Paulo: Cultrix.

2. Iraniano sai de maca, mas leva o ouro após desclassificação de adversário no karatê; entenda. (07 de 08 de 2021). Acesso em 11 de 08 de 2021, disponível em globo.com: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/iraniano-sai-de-maca-mas-leva-o-ouro-apos-desclassificacao-de-adversario-no-karate.ghtml

3. Iraniano sai de maca, mas leva o ouro após desclassificação de adversário no karatê; entenda. (07 de 08 de 2021). Acesso em 11 de 08 de 2021, disponível em globo.com: https://ge.globo.com/olimpiadas/video/na-final-tareg-hamedi-e-desclassificado-por-deixar-sajad-ganjzadeh-desacordado-com-golpe-9749383.ghtml

4. Leal, J. P. (10 de 08 de 2021). Carta da ITKF para WKF e COI pelo Karate Olímpico. Acesso em 10 de 08 de 2021, disponível em pintokaratedojo.com: https://pintokaratedojo.com/2021/08/10/carta-da-itkf-para-wkf-e-coi-pelo-karate-olimpico/

5. Leal, J. P. (09 de 08 de 2021). Carta da WUKF para WKF pelo Karate Olímpico. Acesso em 10 de 08 de 2021, disponível em pintokaratedojo.com: https://pintokaratedojo.com/2021/08/09/carta-da-wukf-para-wkf-pelo-karate-olimpico/


[1] https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/iraniano-sai-de-maca-mas-leva-o-ouro-apos-desclassificacao-de-adversario-no-karate.ghtml, acesso em 11/08/2021.

[2] https://pintokaratedojo.com/2021/08/09/carta-da-wukf-para-wkf-pelo-karate-olimpico/, acesso em 10/08/2021.

[3] https://pintokaratedojo.com/2021/08/10/carta-da-itkf-para-wkf-e-coi-pelo-karate-olimpico/, acesso em 10/08/2021.


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