O MISTERIOSO KARATE
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 13/04/2025
Assim como tudo, o Karate-do está
sujeito aos efeitos das mudanças nas dinâmicas sociais. A atribuição de
características nem sempre pertinentes ao Caminho das Mãos Vazias pode
provocar-lhe marcas que farão dele, ao longo do tempo, um desconhecido.
Pensemos a partir do conceito de estigma, com a contribuição de Erving Goffman (1922-1982), como isso
afeta o Karate-do.
Atualmente, o Karate-do tem sido exposto ao mundo por meios de comunicação cada
vez mais poderosos, como a internet. Outro
meio bastante poderoso, porém, com efeitos não tão imediatos, são os livros. Há
louváveis iniciativas para divulga-los, mas o apelo da internet com as
tecnologias que dominam as mentes desavisadas supera a velocidade dos efeitos
dos livros. Para alcançar um público amplo, as formas de chamar a atenção são
cada vez mais criativas. São feitas associações entre o Karate-do e outras coisas que, mesmo tendo alguma relação, causam
problemas à arte marcial, na medida em que parecem se tornar mais importantes -
ou chamativas e interessantes - que ela própria, por meio da ressignificação
dessas coisas a ele associadas e de sua adaptação ao mundo das vendas,
curtidas, compartilhamentos, etc. São criadas formas de se referir ao Karate-do
que até podem ter algum significado ou relação, mesmo que distante, com a arte
marcial, mas que acabam por
distorce-lo. São coisas do tipo “Karate
jutsu”, “os mistérios do Karate”,
“Karate budo”, “técnicas ocultas”, “Karate
codificado”, “Karate místico”, etc. Reconheço, às vezes pode não haver má intenção no uso de
expressões como essas, ou mesmo pode haver boa intenção, mas, seja como for,
tais coisas parecem criar uma aura muito estranha ao redor da arte marcial.
Pode-se imaginar que é só no
ocidente, em épocas atuais, que a imaginação trabalha fazendo o Karate-do parecer algo fantasioso. A
verdade é que desde os tempos de Funakoshi sensei já havia a preocupação
dele próprio com as deturpações – tanto no âmbito da técnica quanto da parte
filosófica - que surgiam em torno da arte marcial por ele trazida de Okinawa
para o Japão. Ele escreveu sobre algumas fantasias que se criaram a respeito
daquela arte marcial, em que os praticantes pareciam super homens, tendo a capacidade
de feitos extraordinários. Aqui lembro os supostos feitos de Masutatsu Oyama,
fundador da escola de Karate Kyokushin-kay, em que se diz que ele
conseguia matar touros apenas com as mãos. Já no início da sua obra clássica Karatê-Do: O meu Modo de Vida (2010), o sensei afirma: “Sinto
ser essencial, bem no começo, inserir um breve comentário sobre o que o karatê
não é, pois foram escritas muitas coisas absurdas sobre o assunto nos últimos
anos”. Mais a diante ele diz:
Por exemplo, certa vez
ouvi alguém que se declarava uma autoridade dizer a seus espantosos ouvintes
que “no karatê, temos um kata chamado nukite. Usando apenas os cinco dedos de
uma das mãos, um homem pode perfurar a caixa torácica de seu adversário,
agarrar os ossos e arrancá-los do
Depois, Funakoshi conclui: “Como
conseqüência disso, o leigo recebe uma impressão da arte totalmente falsa,
amedrontadora, na verdade; com temor e reverência, ele se pergunta se o
praticante adquiriu poderes sobre-humanos”.[1]
Já na obra Karatê-do Kyohan: o texto mestre (2014), ele se
preocupa com a deturpação de outro lado do Karate-do,
ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial:
Independentemente do
declínio do nível técnico durante essa época, não posso negar que havia
momentos em que eu me achava dolorosamente desapontado ao me tornar ciente do
estado espiritual quase irreconhecível para o qual o mundo do Karate havia se
voltado, diferente do espírito que prevalecia no tempo em que apresentei pela
primeira vez o Karate e comecei a ensinar. Embora alguns possam afirmar que
essas mudanças são apenas o resultado natural da expansão do Karatê-do, é
evidente que esse resultado não pode ser visto com alegria, mas sim com
É incontestável que o Caminho das
Mãos Vazias possui, necessariamente, uma relação com a espiritualidade e a
filosofia orientais. Seus elementos, tanto materiais quanto imateriais ligados
à religiosidade e seus princípios morais ligados à filosofia, não deixam
dúvidas a respeito. Mas essa relação é, muitas vezes, tomada de forma muito
criativa e imaginativa, o que dá origem a mistificações e falsidades.
Fonte: https://jkawfmalta.com/shotokan-karate/the-japanese-dojo/,
acessado em 03/01/2025.
1.
O estigma
A palavra estigma, como abordada na obra
Devido às denominações apontadas
acima, além de outras causas como as formas de pratica-lo, o Karate-do sofre uma estigmatização no
meio das artes marciais. Há uma distorção do seu lado espiritualizante, que o
torna alvo de acusações de ser uma arte marcial para pessoas fracas e de que,
como as coisas espirituais, esconde segredos ou possui coisas que só são
acessíveis a pessoas graduadas que, no caso, são os faixas pretas. Fazendo um
paralelo, eles seriam equivalentes aos sacerdotes das religiões que (somente
eles) podem acessar certas coisas interditas – para usar uma expressão encontrada
em As formas elementares da vida religiosa (1996) – aos iniciantes. Tais
impressões são, certamente, fruto da desinformação.
A incompreensão dos ocidentais a
respeito da cultura japonesa é um terreno fértil para que a imaginação faça seu
trabalho e, procurando explicações e fazendo associações com informações -
verdadeiras ou falsas -, crie um mundo místico ao redor do Caminho das Mãos
Vazias. Portanto, é necessário entender minimamente a sociedade japonesa, pois
ela foi quem deu as bases do Karate-do que conhecemos. Isso é algo difícil, pois não é
simples entender como funciona uma sociedade tão diversa da nossa e como ela dá
origem a uma arte marcial como o Karate-do.
Porém, não sendo possível um aprofundamento nesse tipo de conhecimento, é
preciso, pelo menos, ter a noção de que o Karate-do
nasce em uma sociedade muito organizada e com objetivos muito sólidos,
porém, muito espiritualizada, com um pé na tradição e outro na modernidade, o
que já poderia explicar algumas das características do Karate-do, pois ele é - mesmo que se crie a ideia contrária - além
de muito direto e prático - veja-se o conceito de Ikken Hissatsu em Sanches (2021, p. 450 e
posteriores)[2] -,
um caminho espiritual, ou seja, é um reflexo da sociedade onde surgiu.
Mas é necessário, também, procurar
entender o ambiente atual em que está o Karate-do. Mergulhado numa
realidade que exige pressa, criatividade, praticidade, tudo para a obtenção de
resultados cada vez mais lucrativos, certas vertentes do Karate oferecem a facilitação da obtenção de informações “ocultas”
em troca de dinheiro, o que tem sido um fator importante na disseminação de
mistificações sobre ele. Oferecer a revelação de segredos escondidos para
aqueles que queiram pagar por eles é uma excelente estratégia para atrair
curiosos e vender um produto em qualquer área, não só no Karate-do. Mas
no Karate-do não há coisas escondidas
(no que se refere à técnica), ou misteriosas (no se refere ao seu aspecto
espiritualizante); o que há é falta de treino para aprender a técnica e estudo
para entender “sua” filosofia. Um segredo que vou entregar aqui de graça para
se alcançar esse entendimento é treinar muito, e filtrar as fontes de
informação que são acessadas. O resto é invenção.
Os eventos midiáticos em que o Karate se envolve atualmente também
tornam-se uma das fontes de sua estigmatização, na medida em que eles alcançam
grandes e desinformados públicos e vendem a imagem de que o Karate-do é uma arte marcial fraca - mais uma vez - ou
mesmo que para que ela funcione é preciso misturá-la com outras que a
complementem. A questão é a incompatibilidade da necessidade de tempo para se
aperfeiçoar a técnica do Karate-do com as exigências das competições
espetaculares inventadas hoje e que objetivam produzir campeões já amanhã. Nesse
cenário os atletas são praticamente cobaias. Ora, Karate-do é uma arte marcial simples, direta, mas que tem, ao mesmo
tempo, peculiaridades que necessitam de tempo de prática para serem entendidas
e sentidas. Por isso ele é um caminho. É que para o atingimento de objetivos
imediatos no mundo capitalista, buscam-se atalhos a esse caminho, mas Karate-do não foi feito para gerar
dinheiro, que é uma coisa urgente; é legítimo viver de aulas de Karate-do, mas
distorce-lo em nome dos lucros, não; esta é a questão. Tudo aquilo que não se
encaixa nos ditames de certos parâmetros sociais fica estigmatizado como
disfuncional, estranho, ultrapassado, ineficiente, deslocado, feio, desviante, transgressor,
não se encaixa, não serve, destoante, etc. Assim, uma arte marcial que não foi
feita para a trocação de golpes precisa se adaptar e se tornar mais adequada, sendo
comparada até mesmo com o Boxe, sob pena de ser vista como fraca.
2.
Karate-do, o grande desconhecido
Pensando sobre essas coisas e vendo
a realidade ao meu redor, lembro de ter lido em um livro a respeito de uma
certa doutrina, informações sobre como ela, tendo sido criada na França do
século IXX, com objetivos científicos e filosóficos e com consequências
religiosas, chega ao Brasil e, adquirindo características quase que totalmente
religiosas devido ao sincretismo que é fortíssimo em nosso país e a outras
causas mais profundas, acaba por se desvirtuar totalmente, passando a ser
desconhecida por seus próprios adeptos. O Karate-do
passou por um processo bastante parecido. Depois de mais de um século de sua
chegada ao Japão, hoje ele é totalmente desconhecido pela maioria de seus
praticantes aqui no Brasil. Analisando suas duas grandes vertentes, a que se
chama de tradicional e a que se chama de esportiva, nota-se que as duas parecem
se misturar e não sabemos bem onde começa uma e termina a outra. Nesse cenário,
entre o pessoal do que se chama tradicional, poucos conhecem o Karate-do como uma arte de defesa
pessoal, tendo como base para isso a aplicação dos kata (o que, acredito,
deveria ser buscado e desenvolvido),
pois grande parte da prática dessa
vertente é direcionada às competições esportivas, o shiai kumite; já entre o pessoal do que se chama de Karate esportivo
ou olímpico, quase nada se sabe de Karate-do,
pois se dedicam a uma prática que não é uma arte de defesa pessoal. Outras
vertentes que causam ainda mais confusão afirmam conhece-lo e, misturando-o com
outras artes marciais, criam novidades, e dizem que é aquele Karate-do que
havia se perdido no tempo e de alguma forma foi restabelecido. Assim como
naquela doutrina a que me referi, o Karate-do
de hoje em dia é um grande desconhecido dos seus próprios praticantes.
É aproveitando-se desse
desconhecimento e dessa mística criada em torno de um tal segredo que ronda o Karate-do que há algum tempo têm surgido os
vendedores desses segredos. Mas, se eles conhecem esses “segredos”, de onde
eles os tiraram? quem os revelou para eles? será que eles nasceram com eles?
são, portanto, seres iluminados pelos deuses do Karate-do? Não se pode negar que há professoras/es com conhecimento
e capacidade de explorar essas questões de forma honesta e acertada, sem
transformar o Karate-do em algo
totalmente distorcido e mal visto. Mas creio que são poucas essas pessoas. É um
conhecimento que necessita de saberes distantes da nossa cultura. Talvez eles
estejam bem ao nosso lado e não os vejamos, pois nossos olhos foram educados
para ver outras coisas. Ainda assim me pergunto: onde estão essas pessoas?
Concluo dizendo que, sem dúvida, o Karate-do é atravessado por Budo, por jutsu, por códigos - mas não com o significado de coisas ocultas e
sim com o de linguagem, coisa necessária para expressar o seu mundo -, e pelo
místico – mas não como algo mágico ou miraculoso, mas fazendo referência à sua
relação com a religiosidade e filosofia orientais, fundamentais na formação da
sociedade japonesa, que lhe deu origem. Porém, na minha opinião, nenhuma dessas
adjetivações deve ser associada ao substantivo Karate; não se vê nas obras escritas pelos mais renomados autores
sobre Karate, essas associações; ao meu ver, no caso dos praticantes de Karate Shotokan, que é o que pratico e
posso dizer algo a respeito, a única
palavra a ser associada a Karate, para
denomina-lo, deve ser Shotokan, e já
está de ótimo tamanho.
Osu!
3.
Obras Citadas
1. FUNAKOSHI, G.
(2010). Karate-do: o meu modo de vida. São Paulo, SP,
Brasil: Cultrix.
2. FUNAKOSHI, G.
(2014). Karate-Do Kyohan: o texto mestre. (W. Bull,
Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.
3. GOFFMAN, E. (1988).
Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4ª ed.).
(M. B. Nunes, Trad.) Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Zahar.
4.
SANCHES, E.
(2021). Ikken Hissatsu: as origens do karate-do (1ª ed.).
União da Vitória, PR, Brasil: Kaygangue Ltda.
[1] Sobre a questão das colocações de Funakoshi sensei a respeito dessas supostas capacidades dos karateka, é muito importante a leitura da discussão levantada a respeito em Sanches (2021, p. 450 e seguintes). O autor traz, assim como feito aqui, citações de Funakoshi a respeito, porém, demonstrando o perigo – inclusive mortal – de certas técnicas de Karate-do.
[2] Ali o autor demonstra, inclusive, como esse conceito foi sendo esquecido no decorrer do tempo, tornando-se, nas palavras dele, “uma fábula distante e quimérica”, ou seja, praticamente desconhecido como o próprio Karate-do.
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