O KARATE-DO E SUA FILOSOFIA TRANSMITIDA DE FORMA ORAL
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 09/10/2022
Revidado em 23/05/2024
Mais uma vez, faço uma reflexão a respeito de aspectos sócioantropológicos do Karate. Agora, procuro pensar sobre como os conhecimentos teóricos e filosóficos do Caminho das Mãos Vazias são transmitidos entre seus praticantes, especialmente no Brasil: por meio de escritos? oralmente? pelas duas formas? qual a mais eficiente? No meio de toda a discussão que aqui se desenvolve, surge uma outra possibilidade de transmissão da chamada filosofia do Karate-do, a demonstração.
Como referido no texto que escrevi, Diáspora, anacronismo e tradição no Karate (2022), o Karate sofreu várias modificações ao longo do tempo e muitas delas se deram em decorrência das suas viagens pelo mundo. Nessa grande aventura da cultura japonesa mundo a fora, ela soube se manter viva, mesmo fora do Japão, na medida do possível, e essa sobrevivência se deve, claro, à forma como foi preservada.
Tal preservação não se deu como se essa cultura fosse um livro fechado por décadas e que, sendo reaberto um dia, mostrou algo intacto e que passou a ser usado anacronicamente, sem transformações. Na verdade, ela se deu na prática, ocorrendo junto com as coisas de cada tempo. No caso específico do Karate (como já afirmei em outros textos de minha autoria, uma expressão da cultura japonesa), essa prática foi fundamental para sua expansão (da cultura japonesa), e também foi o veículo para as mudanças que ocorreram ao longo do tempo.
Analisando daqui de longe - uma vez que o fato ocorreu há mais de um século - a situação da chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, uma situação certamente precária conforme (IBGE, A identidade japonesa e o abrasileiramento dos imigrantes, s.d.), imagino que eles não trouxeram em sua bagagem muitos livros e, principalmente, livros sobre Karate, até porque, pelo que sei, não havia ainda literatura sobre isso no Japão. Claro que não estou afirmando que não havia literária sobre as artes marciais japonesas ou okinawanas, pois sabemos que elas existem há séculos[2], mas refiro-me aqui a uma literatura específica sobre Karate, escrita no Japão. Faço essa afirmação tendo como referência que o primeiro livro escrito no Japão sobre este assunto, por Gichin Funakoshi, foi publicado em 1922[3] e que temos como marco do início da imigração de japoneses ao Brasil o ano de 1908. Não se pode deixar de considerar aqui as obras escritas por Choki Motobu e Kenwa Mabuni. Em (Os 7 Princípios Do Karate Segundo Choki Motobu, O Último Tiji-Kun, 2020), o autor faz referência a Watashi no Karate Jutsu como “um dos célebres livros do mestre Motobu”, não sendo possível precisar nessa fonte a data de publicação do livro e nem quais são os outros. Já no artigo (Tankosich, 2004, p. 03), consta que a obra foi escrita em 1932, conforme o seguinte trecho com tradução feita pelo Google Tradutor: “Choki Motobu, in his 1932 publication Watashi no karate-jutsu (“My Karatejutsu”), expresses his thoughts on sente nashi in a way that is directly relevant to the question being asked here”, traduzido como “Choki Motobu, em sua publicação de 1932, Watashi no karate-jutsu (“Meu Karatejutsu”), expressa seus pensamentos sobre sente nashi de uma forma que é diretamente relevante para a pergunta que está sendo feita aqui. Em uma seção de um parágrafo intitulada Karate ni sente nashi, ele escreve:”. Ainda no mesmo artigo, Tankoshch referencia a obra Kobo kenpo karate-do nyumon, de Kenwa Mabuni, como escrita em 1938. Portanto, não resta dúvida de que os primeiros imigrantes japoneses no Brasil não trouxeram as obras nem de Funakoshi, nem de Motobu, nem de Mabuni. Considerando verdadeira esta hipótese, já começamos a entender como os conhecimentos do Karate foram transmitidos até o Brasil e nele disseminados: oralmente, ou, usando uma expressão mais popular, pelo boca a boca.
Reforço esta ideia (a da ausência de documentos ou livros sobre o Karate já nessa época do início da imigração) com o fato de que os primeiros japoneses praticantes de Karate do Brasil não vieram para cá com a finalidade de ensinar essa arte, mas de trabalhar em diversas outras áreas, sobretudo na agricultura (IBGE, Inserção no mundo do trabalho, s.d.), porém, algumas pessoas, tendo esse conhecimento e praticando entre eles, começaram a ensinar como um meio de vida ou de manter viva sua própria cultura. Nesse sentido, é importante que se diga que foi desenvolvida uma prática de Karate Shotokan no Brasil, porém, somente na década de 1970 chega ao Brasil Taketo Okuda sensei, o primeiro enviado da Japan Karate Association (JKA), autorizado por Masatoshi Nakayama sensei para representar a arte marcial no nosso país. Não conseguimos chegar a uma data exata da chegada de Okuda sensei, mas em (SANDALL, 2012), há a informação de que ele teria chegado em 1972.
Fonte: (IBGE, Inserção no mundo do trabalho, s.d.)
Uma característica que os japoneses possuem e que dificultou sua aceitação aqui no Brasil no início do século XX e consequentemente a transmissão mais aprofundada do Karate foi, conforme (IBGE, A identidade japonesa e o abrasileiramento dos imigrantes, s.d.), a sua tendência e costume de não se misturar ou se miscigenar com outros povos, neste caso, o brasileiro, mantendo o mais que possível intactos seus traços culturais. Portanto, acredito ter sido essa característica dos japoneses um dos fatores que ajudaram na preservação dos seus costumes dentro de um Brasil altamente preconceituoso e com um forte sentimento anti-imigração, sem falar, culturalmente diverso e, em alguns pontos, podemos até dizer antagônico aos japoneses.
Portanto, acreditamos que entre esses traços de forte identidade do povo japonês trazidos para nossas terras estava o Karate e, como já afirmamos, não foi trazido por meio de livros, mas dentro das pessoas, em suas mentes, em seus corpos, enfim, em seu espírito japonês. Assim, no que coube ao Karate, a filosofia foi ensinada, preservada e transformada ao longo das décadas, sempre por meio da oralidade e da demonstração.
Sabemos que há recursos que possibilitam a documentação e o registro das técnicas e dos costumes que fazem parte da arte, mas, incontestavelmente e até inconscientemente, os professores recebem os conhecimentos nos anos e anos de treinamento e os transmitem a seus alunos da mesma forma, ou seja, oralmente, com raras exceções, e esse método de propagação/preservação vai se repetindo e se mantendo geração após geração. E reforço esse caráter de exceção, uma vez que a adoção de uma forma mais concreta de ensinar as filosofias que compõem o Caminho das Mãos Vazias não é tido como um sistema de ensino comum no Karate, sendo, portanto, de iniciativa individual de cada professora ou professor.
Apesar de haver livros - e as professoras e os professores certamente sabem disso - eles parecem não querer fazer uso deles ou, pelo menos, não demonstram que o fazem ou que um dia fizeram, ou seja, não falam sobre eles nas aulas. Mesmo reconhecendo que este comportamento tem mudado visivelmente ao longo dos últimos anos, em que as/os sensei tem escrito e consumido cada vez mais livros sobre o Karate, muitos dos atuais sensei ainda parecem ter algo “contra” os livros que falam sobre Karate, apesar de as obras mais clássicas dessa literatura terem sido escritas pelos próprios japoneses, o que deveria ser um indício de autoridade e prestígio no assunto. Acreditar apenas no que a/o sensei diz é, claro, uma questão de respeito, mas passa a ser apenas uma questão de fé e apego, quando a pessoa sabe que além do que ele ou ela nos diz há outras fontes muito mais antigas e profundas.
Esse comportamento de não dar crédito às fontes registradas das filosofias que embasam o Karate-do, me dá a impressão de que as pessoas parecem querer mostrar que o conhecimento que possuem vem de si mesmas. Mas, como assim? É que o Karate é - como muitas das coisas em que nos especializamos - algo que o praticante aprende com sua professora ou seu professor durante anos e, ao longo desse tempo, vai desenvolvendo uma forma particular de praticar e muitos chegam a se desligar de seus instrutores e passam a ser autônomos, havendo, porém, os que passam a vida toda praticando com o mesmo professor ou professora, ou que atribuem seus conhecimentos a essas pessoas. Nessa busca por seu próprio Karate, vão dando cada vez menos importância às fontes de suas habilidades (seus sensei), e passam a andar com as próprias pernas. Assim, parece que vão procurando dar cada vez mais a impressão de que o Karate brotou de si, como se fosse algo que veio ao mundo consigo em seu próprio ser, pois se afastam e muitas vezes negam que tenham aprendido com alguém ou de alguma outra fonte como um livro - o que é uma forte expressão das diferenças da nossa cultura em relação à dos japoneses, uma vez que, naquele país, é fortíssimo o costume de venerar os antepassados e os professores, sendo muito comum nos dojo de artes marciais haver uma ou mais fotografias ou caligrafias dos antepassados em exposição permanente.
Porém, alguém lhes passou pelo menos as primeiras técnicas, os primeiros conhecimentos teóricos - mesmo que não muito exatos - para que pudessem, lá na frente, andar sozinhos, e certamente, esses conhecimentos lhes foram passados pela prática e pela oralidade e dificilmente seguiram algum livro ou alguma apostila para essas coisas - lembrando que refiro-me aqui à parte teórico/filosófica do Karate-do e não à sua prática. Quando muito, fizeram-lhes consultas e, depois, seguindo a tradição da oralidade, chegaram no dojo “contando histórias”, sem citar a fonte dos seus conhecimentos e, muitas vezes, nem sabendo.
O que quero afirmar aqui é que são notáveis as limitações de se transmitir conhecimento apenas por meio da oralidade e que isso atinge fortemente a parte filosófica do Karate, especialmente no Brasil, por conta dos contrastes culturais. Em (CALDEIRA, 1988), a autora fala sobre as dificuldades em transmitir e recolher com segurança informações preservadas apenas por meio da oralidade:
Primeiro problema: memória oral sobre um evento que ocorreu há mais de dois séculos e cujas informações só se mantêm de modo fragmentário. [...] Ao escrever First-Time Price teve, então, que enfrentar uma série de questões impostas pelo próprio objeto de análise. Ele teve que descobrir a forma cultural específica — canções, lendas, histórias, encantamentos ditos eventual e ritualisticamente — pela qual o conhecimento sobre o passado é transmitido. Ele teve que lidar com a memória dos Saramakas e com documentos sobre a sua história, com diferentes versões sobre o passado e a impossibilidade de dizer o que ele realmente foi.
No nosso caso, não se trata de reconstruir o passado do Karate, e sim, de repassar conhecimento filosófico à frente por meio da oralidade, o que é tão precário quanto a reconstrução do passado quando feito por meio desse método. Toda essa discussão está mais aprofundada num texto de um trabalho acadêmico que realizei e que, apesar de não ser nada muito complexo e carecer de aperfeiçoamentos e aprofundamento, publicarei em breve, inclusive com a inclusão da questão do que estou chamando de “demonstração”. Assim, não vou nos estender mais aqui para que não ser repetitivo.
O texto contou com a colaboração de alguns professores de Karate, a quem sou muito grato. Ficam, portanto, algumas perguntas que serão abordadas no citado trabalho acadêmico que em breve publicarei: é eficiente repassar a chamada filosofia do Karate apenas oralmente para os alunos? Será que as pessoas que resolvem repassar essa filosofia têm o domínio sobre ela? Como aprenderam? De que outras formas esses conhecimentos podem ser repassados de maneira mais eficiente? Existe realmente, uma filosofia do Karate?
Oss!
Fontes citadas
CALDEIRA, T. P. (1988). A presença do autor e a pós-modernidade em Antropologia. Novos Estudos, 133-157. Acesso em 08 de 10 de 2022
FROSI, T. O., & ZARPELLON, J. M. (Abril de 2011). Repensando a história do Karate contada no Brasil. Revista Brasileira de Educação Física, 297-312. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em https://www.scielo.br/j/rbefe/a/gnJLbYyVVtgcP9hq8LyjdsG/abstract/?lang=pt
IBGE. (s.d.). A identidade japonesa e o abrasileiramento dos imigrantes. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/japoneses/a-identidade-japonesa-e-o-abrasileiramento-dos-imigrantes.html
IBGE. (s.d.). Inserção no mundo do trabalho. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/japoneses/insercao-no-mundo-do-trabalho.html
SANDALL, J. (08 de Janeiro de 2012). Sensei Taketo Okuda. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Karate JKA: http://karatejka.blogspot.com/2012/01/sensei-taketo-okuda.html
SILVA, H. P. (28 de 02 de 2021). A obra de Nakayama sensei (um clássico) está ultrapassada? Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/02/a-obra-de-nakayama-sensei-um-classico.html
SILVA, H. P. (11 de 05 de 2021). Karate: Jutsu? Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2021/05/karate-jutsu.html
SILVA, H. P. (27 de Fevereiro de 2022). Diáspora, anacronismo e tradição no Karate. Acesso em 08 de 10 de 2022, disponível em Meus aprendizados sobre o Karate: https://estudosdekarate.blogspot.com/2022/02/diaspora-anacronismo-e-tradicao-no_27.html
O Karate é maravilhoso, você ensina na ida e aprende de volta.
ResponderExcluirParabéns pelo esforço e conclusão do trabalho.
Atenciosamente,
Sensei Adevanildo Barros de Porto Velho/RO
Grato pela sua colaboração no meu trabalho, sensei!
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