SABER RECUAR NO KARATE-DO É IMPORTANTE
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 07/02/2021
Atualizado em 15/02/2021
As técnicas de luta do Karate-Do mostram uma bravura de seus praticantes. É preciso ter a capacidade de perceber o momento da mínima distração do adversário - ou criar essa distração, conforme ensina (TOKITSU, 2012), nos mostrando o combate de ki - e aí atacar decidido soltando um golpe certeiro e traumático para "atravessar" o adversário. Assim, essa bravura é mostrada sempre no momento do ataque. Mesmo que o ataque não seja bem-sucedido é possível perceber que houve uma tentativa de vencer um adversário que às vezes é claramente mais forte... um ato de bravura de quem luta independente do adversário. Treina-se Karate para se defender por meio de um ataque fulminante, o ikken hissatsu, citado em (Nakayama, 1979).
Porém, no Karate-Do há também as técnicas de recuo. Essas técnicas são tão praticadas quanto as de ataque, mesmo que o objetivo da arte seja o ataque indefensável e definitivo. Mas para que se praticam recuos numa técnica de luta em que o objetivo é vencer pelo ataque?
Recuar no Karate-Do é uma preparação para o ataque. A defesa com recuo e o ajuste da distância são momentos em que o karateka se posiciona para o ataque no momento certo, ou seja, no Caminho das Mãos Vazias, ao se atingir um nível elevado, o recuo não é sinal de medo, mas de técnica.
O aprendiz de Karate-Do geralmente se vê impulsionado a se aprofundar na parte teórica da arte - claro que isso vai depender de várias coisas como o que o sensei cobra dos alunos, que tipo de Karate se pratica, qual o objetivo, etc. -, principalmente hoje em dia quando as informações estão tão à palma da mão e à distância de um dedo. Digo "hoje em dia" porque alguns anos atrás, pelo que sei, as informações eram transmitidas muito pelo boca a boca e assim se desvirtuavam devido às interpretações e imprecisões, o que desestimulava a pesquisa e a curiosidade. Também deve-se considerar a escassez de material para pesquisa que era muito difícil. Já havia livros, mas não eram fáceis de se encontrar e muitos não estavam em língua portuguesa. Havia revistas, mas também não eram tão acessíveis.
Hoje, como dissemos, as informações estão à mão. Porém, mesmo com as facilidades na busca das informações por meio dos livros, artigos científicos, blogs, vídeos, áudios, cursos on-line, etc, a qualidade das informações – principalmente na internet - nem sempre é boa, por motivos que não precisamos abordar agora, e isso é um grande desserviço ao Karate. Fazendo uma comparação com o pedagogo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, popularmente conhecido pelo pseudônimo Allan Kardec (Kardec, 2012), que diz que um dos maiores prejuízos ao Espiritismo é a divulgação de informações erradas sobre ele, digo que o Karate sofre do mesmo mal. É importante estudar sobre o Karate, mas é preciso buscar informações e conhecimento em fontes confiáveis; é preciso estudar sobre o Karate, mas é preciso ter a humildade de reconhecer que aprendeu algo errado, abandonar esse conhecimento e partir para o melhoramento. Eis aí um aspecto importante do recuo no Karate.
Quantas vezes trocamos de dojo e de sensei na longa caminhada do Karate-Do? Quantas vezes nesses episódios nos aborrecemos - por conta do nosso egoísmo - com uma visão diferente do Karate apresentada pelo novo sensei? Certamente que não devemos considerar como certo tudo que os sensei – ou pretensos sensei - nos ensinam porque há coisas que realmente são absurdas ou mesmo já foram superadas, mas quando recebemos uma nova informação dentro do Karate, devemos, num primeiro momento, lembrar do Dojo Kun e pensar, "respeito acima de tudo". Só o tempo nos dirá se aquilo que está sendo ensinado é bom ou ruim, ou seja, é o momento de recuar.
Por que recuar diante de uma nova informação ou diante de uma nova visão sobre uma técnica que já dominamos? Vejam o peso dessa expressão “já dominamos”. Quando dizemos que já dominamos uma técnica estamos inconscientemente dizendo: eu já sei essa técnica e o que quer que venham me dizer de diferente sobre ela vai estar errado, pois eu já a domino. Também vamos estar dizendo que a única forma dessa técnica ou desse conhecimento é a que está em nós e que não há outra.
Por várias vezes tive que responder constrangido à pergunta "quais kata você sabe?". Fico constrangido porque tenho consciência de que não sei nenhum. Dizer que sei fazer um kata é, para mim, muito relativo. Na minha opinião, a resposta mais acertada é “estou aprendendo tais kata”. Eu posso saber os kyodo segundo tais e tais critérios, mas o sensei pode ter outros critérios e aí eu não vou mais poder dizer que sei fazer tal kata, uma vez que o que eu julgava saber é bem diferente do que ele ensina. Vejo muitos dizendo que sabem fazer dezenas de kata. Será? E ainda tem o aspecto da aplicação dos golpes dos kata. Quem pode dizer que conhece as aplicações de todos os golpes dos kata? Para aquela pergunta inicial eu gostaria de dar uma resposta mais ponderada, mas, sem querer dar uma de sábio no meio do treino, eu digo "a série Heian, os três Tekki, o Bassai Dai e o Jion".
Por isso uso a palavra “recuar”. Porque se nos mantivermos firmes na opinião que temos e não aceitarmos a que o sensei – ou mesmo que outros companheiros - nos traz, criaremos um conflito. Portanto, é preciso recuar no nosso egoísmo e deixar que aquele novo conhecimento nos traga algo de novo e de proveitoso para nosso Karate. Devemos fazer com que ele se enraíze em nós e dê frutos. Quando esse novo conhecimento estiver forte, depois desse recuo, é a hora de pô-lo em prática e aí, avançar, atacar, seja na luta, seja no conhecimento.
Ora, muito se diz que o Karate-Do é para a vida toda. Essa atitude que descrevi acima é praticada recorrentemente no Karate-Do. Muitas vezes já chegamos num Dojo com uma carga de conhecimento que conflita com o do sensei. É nesse momento que ele deve ter a capacidade de nos trazer sua visão, seu conhecimento e nos enriquecendo, fazer com que recuemos e nos fortaleçamos, cabendo a nós, recuar diante no nosso egoísmo.
Quantas vezes no nosso dia a dia fora do Dojo nos deparamos com situações que nos forçam a ter que mudar de posição sobre algo que tínhamos como certo, como única alternativa, e então nos afastamos porque não tivemos a capacidade de aceitar o novo, o diferente?
É aí que o Karate-Do nos serve fora do Dojo. Se praticarmos os ensinamentos do Dojo Kun e do Niju Kun, dentro e fora do Dojo, o Karate-Do estará nos fortalecendo dentro e fora, da mesma forma, e ele estará nos guiando “para a vida”.
Oss!
Bibliografia
Kardec, A. (2012). O Livro dos Espíritos: princípios da Doutrina Espírita/recebidos e coordenados por Allan Kardec (2ª reimpressão ed.). (G. Ribeiro, Trad.) Rio de Janeiro.
Nakayama, M. (1979). O melhor do Karate (5 ed., Vol. 5). (C. Fischer, Trad.) São Paulo, São Paulo, Brasil: Cultrix.
TOKITSU, K. (2012). Ki e o caminho das artes marciais. São Paulo: Cultrix.
Mais uma vez, um texto muito informativo e de qualidade!
ResponderExcluirEssa semana, vi um vídeo de sensei Machyda, onde ele fala da vida dele e do karate, que todas as respostas ele encontra no karate, seja uma questão de saúde, uma questão religiosa - inclusive, ele diz que não tem religião, a fé dele é no karate - ou seja, a vida dele é o próprio karate. Por que citei esse exemplo? Para ilustrar o trecho onde você fala das idas e vindas dentro do karate, , do saber recuar na hora de um golpe, das trocas de sensei, da busca pela informação correta, abrindo mão até daquilo que tínhamos como verdade indiscutível, etc.
Aí vem o saber recuar que o karate ensina e que acaba gerando um ensinamento para a vida também.
Obrigado, meu irmão. Oss!
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