DIÁSPORA, ANACRONISMO E TRADIÇÃO NO KARATE
Humberto Pereira da Silva
Natal/RN, 23/02/2022
Revisado em 09/07/2024
A dispersão do povo japonês pelo mundo, levando consigo sua representação cultural, aí incluído o Karate/Karate-Do, provocou grandes transformações na arte marcial conhecida como Caminho das Mãos Vazias. É possível praticar, hoje em dia, essa arte marcial, como se praticava há mais de um século? Vamos refletir sobre essas questões.
A busca pela recuperação das técnicas do Karate numa tentativa de fazê-lo voltar às suas origens, ou seja, praticá-lo como se estivéssemos antes do século XX, é infrutífera para os ocidentais.
Afirmo isso porque essa arte marcial, melhor dizendo, esse elemento cultural (é assim que considero o Karate neste texto, um elemento cultural), tanto representante do Japão como de Okinawa e até da China, já sofreu muitas perdas e transformações ao longo dos anos. Com a diáspora do povo japonês para o Brasil e para outros países esse fenômeno se potencializou. Para efeito de comparação, lembremos que a “simples” saída do Karate da ilha de Okinawa para o Japão já lhe custou – sim, considero um custo - inúmeras transformações, sendo nítidas as diferenças entre os “Karates” de Okinawa e o do Japão. Imaginemos, portanto, os efeitos transformadores que ocorreram com a arte marcial em decorrência da diáspora japonesa que proporcionou o espalhamento desse povo ao redor do mundo, assim como seus elementos culturais, entre eles o Karate. Ora, tendo sido imensas as transformações ocorridas no Karate quando ele saiu de Okinawa para o Japão, certamente foram muito maiores as que ocorreram mundo afora. Isso tanto é verdade que basta ver a grande variedade de “Karates” que existem. São tantas variações e tantas entidades que buscam tê-lo sob seu domínio, que nem esporte olímpico consegue ser, apesar de estar em todos os continentes, devido, justamente, a essa imensa variedade. O Karate não é um só.
A diáspora
Me referi acima a uma “diáspora japonesa”, objetivando demonstrar um dos veículos ou motivos dos efeitos ocorridos na cultura japonesa, sobretudo no Karate, nosso tema. Mas, será que houve diáspora no Japão? Primeiramente, vejamos o significado de diáspora, conforme (Houaiss):
diáspora Datação: a1958
substantivo feminino
1 Rubrica: história.
dispersão dos judeus, no decorrer dos séculos, por todo o mundo
2 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: história.
dispersão de um povo em consequência de preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica
3 Rubrica: biologia.
m.q. dissemínula
Apesar de o significado ser direcionado, em primeiro lugar, especificamente ao povo judeu, nada impede que o termo seja usado para outros, caso lhe ocorra o mesmo fenômeno, por exemplo, como é o caso da diáspora africana e tantos outros povos dispersados pelo mundo, inclusive o da própria Okinawa. Nesta pesquisa, encontrei textos utilizando diretamente a expressão “diáspora japonesa” para se referir à dispersão dos japoneses por vários países. Pelo que vemos na consulta ao dicionário, o significado de diáspora nos leva a entender que para que haja esse fenômeno, são necessários “preconceito ou perseguição política, religiosa ou étnica”. Torna-se necessário, portanto, verificar se foram esses os motivos da saída de grande quantidade dos japoneses do seu país, para que se possa afirmar se houve ou não uma diáspora nesse caso.
No texto (Diáspora Japonesa), há relatos sobre a emigração dos japoneses a partir do século XV para diversas regiões asiáticas, entre outras informações que parecem incluir a saída de japoneses do seu país no conceito de diáspora, como segue: no século XVII, “católicos japoneses fugiram da perseguição religiosa imposta pelos shōguns e se estabeleceram nas Filipinas”. “Depois que o Império Português fez contato pela primeira vez com o Japão em 1543, uma grande escala de comércio de escravos se desenvolveu em que portugueses compravam japoneses como escravos no Japão e os vendiam para vários locais no exterior, incluindo o próprio Portugal, ao longo dos séculos XVI e XVII”. “Quando o Japão perdeu as Ilhas Curilas, 17.000 japoneses foram expulsos, a maioria das ilhas do sul”. “Após e durante a Segunda Guerra Mundial, a maioria desses japoneses no exterior foi repatriada para o Japão. Assim como a colonização britânica, os japoneses mudaram-se para países ultramarinos durante a Segunda Guerra Mundial. As potências aliadas repatriaram mais de 6 milhões de japoneses de colônias e campos de batalha em toda a Ásia”.
Também existem no texto acima citado, informações sobre o espalhamento de japoneses por diversos países em diversos continentes, por vários motivos. Na lista que segue, retirada dessa mesma fonte, as informações sobre as quantidades de japoneses em vários países dão uma ideia do fenômeno da saída dessas pessoas do seu país:
Grandes cidades com população significativa de japoneses
São Paulo , Brasil: 693.495
Los Angeles , Estados Unidos: 68.744
Bangkok , Tailândia: 52.871
Nova York , Estados Unidos: 46.137
Xangai , China: 43.455
Cingapura : 36.423
Grande Londres , Reino Unido: 34.298
Sydney , Austrália: 32.189
Vancouver , Canadá: 26.910
Hong Kong , China: 25.004
Londrina , Brasil: 25.000
Melbourne , Austrália: 19.878
São Francisco , Estados Unidos: 18.862
Honolulu , Estados Unidos: 16.306
Paris , França: 15.684
San Jose , Estados Unidos: 14.761
Toronto , Canadá: 13.725
Seul , Coreia do Sul: 12.655
Seattle , Estados Unidos: 12.548
Kuala Lumpur , Malásia: 12.539
Chicago , Estados Unidos: 11.928
Manila , Filipinas
Davao City , Filipinas
Observação: os dados acima mostram o número de japoneses que viviam no exterior em 1º de outubro de 2017, de acordo com o Ministério das Relações Exteriores do Japão.
No site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), consta que a vinda de japoneses ao Brasil, em grande parte para trabalhar na agricultura, foi um fator provocado tanto pelos problemas gerados pela modernização do Japão ocorrida com a Restauração Meiji, como pela necessidade de mão de obra “para substituir o trabalho escravo” no Brasil.
Uma das famosas fotos do navio Kasato Maru, que trouxe, em 1908, os primeiros imigrantes japoneses ao Brasil. Fonte: (Senado, 2018)
Temos, portanto, informações de vários dos motivos que provocaram a saída de multidões de japoneses do seu país como perseguição religiosa, escravização, expulsão devido a perda de territórios em guerras, dificuldades de ordem econômica, etc. Assim, sem me alongar mais, acredito ser adequada a utilização do termo diáspora para me referir à saída de cidadãos japoneses para tantos países com cultura completamente diferente da sua, provocando assim, um choque cultural e suas inevitáveis transformações, mirando aqui nas consequências para o Karate.
O anacronismo
Afirmei inicialmente a impossibilidade de praticarmos, hoje em dia, o Karate como se praticava nos seus primórdios, ao se tentar resgatar suas técnicas perdidas, devido às transformações e perdas que ele sofreu por mais de um século. Afirmei e reafirmo. Mas afirmações podem ser rebatidas. Notemos que estou falando aqui de duas coisas distintas, sendo uma, recuperar as técnicas e, outra, praticar como se fazia há mais de um século. A primeira coisa é possível, porém, pode-se questionar isso, já que esse trabalho depende em grande parte de interpretações e deduções a partir, principalmente de observações e estudos dos kata e também da transmissão oral, e a segunda (praticar como se fazia há mais de um século), não, se bem que também pode ser problematizada.
Devo confessar que ao iniciar este trabalho, fui movido pela intenção de demonstrar a impossibilidade acima, porém, pensando melhor, levantei a seguinte questão: realmente é impossível praticar o Karate como era feito há mais de um século, pelo menos, mas essa impossibilidade ocorre, pelo que posso imaginar, devido às grandes diferenças culturais entre aqueles tempos da formação do Karate (antes da chegada ao Japão) e os atuais, uma vez que considero aqui o Karate uma expressão cultural e social de uma época específica. Porém, imaginemos que em algum lugar essas diferenças culturais, apesar de existirem, não são tão grandes assim, a ponto de tudo ter se perdido. Agora a impossibilidade começa e diminuir, pois, ali seria possível se praticar o Karate como - ou, pelo menos, de forma aproximada - se fazia por volta do final do século XIX, começo do século XX. Mas será que esse lugar existe? Afirmo que esse lugar é justamente o berço do Karate, Okinawa.
Agora temos outras duas coisas: uma é a impossibilidade inicialmente afirmada, que realmente existe, se quiséssemos praticar o Karate da forma antiga em um lugar muito diferente de onde ele antes era praticado (o Brasil, por exemplo) e a outra é a possibilidade de se fazer isso em um lugar que ainda preserva muitos aspectos da cultura do tempo em que o Karate estava sendo idealizado (Okinawa).
Toda essa impossibilidade me leva a afirmar haver um certo anacronismo na tentativa de se trazer para a atualidade um Karate do século XIX, mas não desconsidero o mérito que deve ser dado a esse resgate cultural e técnico, afinal, como poderíamos conhecer as origens e entender essa arte sem esse trabalho? A simples pesquisa histórica de algo prático como o Karate parece nos levar naturalmente a tentar praticá-lo, ou, seguindo o caminho inverso, a prática nos parece levar naturalmente a pesquisar suas origens. O erro, ou seja, o anacronismo, está em se querer introduzir numa sociedade como a nossa, já em sua origem totalmente diferente da em que surgiu o Karate, as suas antigas práticas. Existe aqui (no ocidente) uma resistência natural aos princípios que norteiam as artes marciais japonesas (budo) e volto a colocar sem temor de estar sendo redundante, que isso é devido às diferenças sociais e culturais. Essa tentativa - volto a dizer, sem prejuízo do mérito da busca por preservar toda essa cultura - pode provocar ainda mais distorções, pelo fato de estarem sendo realizadas numa sociedade diversa da sua.
Segundo Tokitsu (2012),
[...] as artes marciais japonesas ou budo são baseadas fundamentalmente na concepção budista e xintoísta do mundo e em um universo no qual não há absoluto porque nada existe que seja relativo.
Nota-se, como afirmado desde o início desta pesquisa, que o Karate deve ser encarado como uma representação da cultura e sociedade de outro tempo, e isso fica muito claro quando consideramos que muito do seu lado teórico/filosófico descende do Budismo e do Xintoísmo, práticas antiquíssimas.
Vejamos as considerações de Gichin Funakoshi sobre a questão do efeito que sua arte sofreu ao chegar no Japão:
Em consequência da desordem social que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial, o mundo do karatê se dispersou, bem como muitas outras coisas. Independentemente do declínio do nível técnico durante essa época, não posso negar que havia momentos em que eu me achava dolorosamente despontado ao me tornar ciente do estado espiritual quase irreconhecível para o qual o mundo do karatê havia se voltado, diferente do espírito que prevalecia no tempo em que apresentei pela primeira vez o karatê e comecei a ensinar. Embora alguns possam afirmar que essas mudanças são apenas o resultado natural da expansão do Karatê-do, é evidente que esse resultado não pode ser visto com alegria, mas sim com apreensão (Funakoshi, 2014).
Ora, se naquele tempo Funakoshi sensei já lamentava o desvirtuamento que ocorria com o Karate, imaginemos nos dia atuais como ele se sentiria vendo como praticamente nada do que ele recomendava se pratica por aqui, a não ser, em lugares isolados, algo que mais parece uma imitação de tudo aquilo, com raras exceções, e tentemos, sobretudo, conceber aqueles princípios tão importantes para aquele tempo e já tão sofridos, sendo trazidos para nossa época.
As artes marciais japonesas são norteadas pelo conceito de budo, algo muito mal entendido por nós e, consequentemente, distorcido. Sobre a dificuldade da prática do budo pelos ocidentais, Tokitsu (2012) afirma:
O budo se assenta sobre essa concepção do mundo e essa forma de sensibilidade, e dentro disso, a ideia de treinar, cultivar, é central. Desenvolver essa ideia no contexto de outras culturas seria, de certo modo, estender a generosidade da lógica budista de dar vida à realização por meio da abolição de si mesmo. [...]. No budo, essa busca é realizada por meio do treinamento intensivo de técnicas físicas. Através desse processo, a prática do budo leva, de certo modo, estudantes ocidentais, assim como mestres japoneses, a duvidar e questionar seu modo de ser. Para os ocidentais essa não é uma questão de adotar o que poderíamos chamar de japonesismo. Alguns ocidentais parecem viver de um modo mais japonês que os japoneses. Penso que abdicar da própria identidade ou torna-la ambígua não ajuda; muito pelo contrário, a abordagem do budo conduz ao fortalecimento da identidade pois possibilita que se viva intensamente no aqui e agora, a cada momento. Praticar budo fora do Japão significa que os praticantes têm que desenvolver a própria identidade sem depender dos modelos japoneses.
Certos especialistas ocidentais definem budo de outra maneira; eles observam as características comuns das diversas disciplinas das artes marciais. Desse modo, produzem um catálogo que não tem estrutura. Sua abordagem falha ao não levar em consideração a qualidade específica do budo, que reside na noção de treinar ou cultivar o ser humano mais do que nas particularidades dos movimentos empregados nas diversas disciplinas.
Portanto, é notória a dificuldade de se praticar os princípios filosóficos que o Karate nos traz, por causa do choque cultural/social. Não que nós ocidentais não tenhamos a capacidade de nos adaptarmos ao budo, mas, como dito na citação acima, o ocidental quer praticar o budo de forma a abdicar da sua própria identidade, buscando se “japonesar”, e isso não é o objetivo do budo.
Segundo Lowry (2011, p. 108), costumes orientais dificilmente são incorporados entre os ocidentais e, até mesmo no próprio Japão, há dificuldades em os jovens compreenderem e praticarem, atualmente, costumes tradicionais como a conhecida reverência/cumprimento chamada ojirei:
[...] Ver um homem ocidental fazer uma reverência hoje em dia é quase tão raro quanto ver uma mulher fazendo a versão feminina do gesto, a mesura feita com um dobrar de joelhos. [...] No Japão, as criancinhas mal começam a andar aos tropeços e já são “dobradas” para assumirem a posição correta pelos pais, até que o movimento seja quase instintivo. Etnologistas acham que o hábito pode ter começado ainda mais cedo, pois tradicionalmente os bebês eram carregados no estilo onbu, nas costas das mães, então eles estariam fazendo a reverência, de certa forma, sempre que as mães a fizessem. Mesmo assim, com exceção das pessoas envolvidas em artes tradicionais, como a cerimônia do chá ou as artes marciais, o japonês comum da atual geração também não tem grande refinamento nessa arte. Os pais reclamam que a geração mais jovem não tem polidez ao fazer o ojirei, ou reverência, que antes era um padrão em qualquer lugar no Japão, e era feito dezenas de vezes ao dia.
Certamente esse comportamento não é de se estranhar, se for levado em conta que já afirmei que toda essa dificuldade de hoje em dia se deve à questão do anacronismo, ou seja, os dias atuais não são adequados às práticas antigas, logo, há pessoas que, sendo mais modernas, sentem dificuldades com as coisas de antigamente, caso dos jovens citados acima. Imagino que há no Japão um conflito entre essas coisas (o antigo e o moderno). Apesar do evidente respeito ao passado - inclusive a religião predominante daquele país, o Xintoísmo, ensina a reverência os antepassados - há conflitos. Assim, certamente, para os ocidentais e seu superficialismo, esses conflitos e as dificuldades decorrentes são bem maiores.
Portanto, retomando o raciocínio anterior, me parece que, se há um lugar onde se possa, com algum sucesso, praticar o Karate como se praticava na época anterior à sua saída de Okinawa, com um choque cultural menor e um anacronismo menos acentuado, é a própria Okinawa.
A tradição
Faço essa afirmação porque – apesar de nunca ter ido ao arquipélago – sei pelas informações disponível, divulgadas pelas pessoas que já tiveram a boa sorte de lá estar, que ali há ainda o tão falado e, na minha opinião, verdadeiro, karate tradicional. Não tradicional apenas no nome, mas, tradicional porque preserva muito das tradições.
Sobre essa questão da tradição no Karate, Sanches (2022) afirma logo no início que a tradição está fortemente vinculada ao passado. Trata, também, da questão da tradição como ela é considerada dentro da escola Shotokan. No texto, afirma que houve três grandes momentos em que a tradição do Karate sofreu modificações muito fortes, históricas: a primeira teria sido com a Restauração Meiji, depois com a difusão do Tode no Japão e, finalmente, com o fim da Segunda Guerra Mundial.
Vejamos que todos esses eventos ocorreram fora de Okinawa. Claro que lá houve grande influência vinda deles, mas não foi lá o epicentro dos acontecimentos, como foi no Japão. De alguma forma, o povo de Okinawa conseguiu manter preservada grande parte de suas tradições, inclusive se mantendo culturalmente mais aproximada da China do que do Japão. Essa espécie de resistência que gerou um isolamento considerável da influência cultural do Japão também se fez refletido na prática do Karate. Não é à toa que quando se quer conhecer um Karate, como se diz, “raiz”, tradicional, se vai a Okinawa e não ao Japão. E por que não se vai ao Japão? Porque lá foi justamente onde começaram as grandes transformações sempre lembradas em relação ao Karate. Sem dúvida, em Okinawa ocorreram mudanças também, mas o diferencial de lá é que se observa um esforço de preservação do Karate como em nenhum outro lugar.
A questão do anacronismo abordada acima também se faz presente ali, mas, sejamos realistas, com muito menor intensidade do que em qualquer outro lugar, em termos de prática de Karate, uma vez que ali as tradições, os costumes e os aspectos culturais e sociais ainda são mais preservados.
Portanto, afirmo, ali, sim, é possível se praticar um Karate muito mais próximo de como era na época da sua saída para o Japão, por meio de um resgate, muitas vezes desnecessário, pois parece que ali (e só ali) o Karate antigo ainda resiste e faz parte do cotidiano. Porém, aqui não. Aqui se pratica e só se pode praticar de forma sincrônica o Karate de hoje. Há tentativas de se fazer o contrário, mas nossa sociedade, como dito acima, naturalmente resiste ao antigo, bem mais que a japonesa, fazendo uma comparação.
Me parece que ficam, ao final, muitas perguntas: será que é esse anacronismo que provoca tantas dificuldades à prática do Karate de uma forma mais autêntica, frente aos encantos da sua versão esportiva, ou há outro motivo? Será que é esse anacronismo que o faz ser cada vez mais apagado e distorcido, sendo praticado isoladamente aqui e ali por pessoas abnegadas e quase sempre da velha guarda do Karate? Será que é inútil lutar contra os efeitos do anacronismo e ficar tentando fazer o Karate voltar a ser o que foi há mais de um século, ou, pelo menos, tentar praticá-lo buscando objetivos mais profundos que a tentativa de vencer competições?
Acredito que os antigos objetivos do Karate ainda podem ser buscados exatamente como eram, ou seja, a prática de um sistema de defesa pessoal, por um lado, e a elevação mental, espiritual e moral, por outro (o que me parece ser o budo). Isso se sustenta, inclusive, uma vez que o conceito de budo não é anacrônico; ele não mudou desde o século XIX, buscando as mesmas coisas desde então. Além disso, se aqui no ocidente as diferenças culturais e sociais nos impedem de sermos como são os orientais – naturalmente -, podemos nos esforçar e buscar esses objetivos, procurando nos adaptar à arte e não tentando adaptar a arte a nós (fazendo dela mais um produto do mundo capitalista), pois, neste caso, estaríamos – como já estamos – criando, aos poucos, outra coisa que insistimos em chamar de Karate ou Karate-do. Notemos que falo aqui de buscar os objetivos que transcendem a prática física (como no passado) o que acho possível hoje em dia – e isso não é um objetivo somente do budo, mas de diversas filosofias - e não de praticar como antigamente, o que já não considero tão possível, como já defendido, inclusive porque os objetivos práticos das artes marciais daquele tempo já não existem mais (a guerra corpo a corpo) e – um ponto também muito relevante – os meios de condicionar o corpo à prática são outros em relação àquela época. Portanto, afirmo que muitas práticas/técnicas já se perderam, mas a busca da transformação interior por meio da prática – que é exatamente o budo, pelo que pude entender até aqui – não se perde, pois sempre acompanha o ser humano.
Foto mostrando a prática antiga em Okinawa. Fonte: (Frosi, 2013)
Por outro lado, quando afirmei que Okinawa seria um lugar mais adequado à busca de uma prática mais aproximada à do passado, não quis dizer que lá a situação de conflitos seja parecida com a do passado e que por isso seria um ambiente propício à prática de artes marciais como naquela época, mas me referi ao ambiente cultural, que ali tem ainda algumas características preservadas e até mesmo há descendentes diretos dos grandes professores que difundiram os primeiros estilos de Karate. Ou seja, ali há um ambiente cultural propício a uma prática antiga e não um ambiente político/militar que exija o aprendizado de uma arte marcial para a sobrevivência das pessoas.
Concluo com o conhecido poema de alguém que sabia do que estava falando:
Buscar o antigo para entender o novo.
O antigo, o novo.
Essa é uma questão para o tempo.
Em todas as coisas, o homem deve manter a mente limpa.
O caminho:
Quem irá passar bem por ele e com retidão?
Poema de Gichin Funakoshi (Funakoshi, 2014).
Oss!
Fontes citadas
Diáspora Japonesa. (s.d.). Acesso em 27 de 02 de 2022, disponível em https://pintokaratedojo.com/2013/12/20/historia-do-karate-em-okinawa-parte-2/
Frosi, T. (20 de 12 de 2013). HISTÓRIA DO KARATE EM OKINAWA – Parte 2. Acesso em 27 de 02 de 2022, disponível em Rádio Karate: https://pintokaratedojo.com/2013/12/20/historia-do-karate-em-okinawa-parte-2/
FUNAKOSHI, G. (2014). Karatê-Do Kyohan: o texto mestre (1 ed.). (W. Bull, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.
Houaiss, I. A. (s.d.). Houaiss Eletrônico. (Versão monousuário 3.0).
IBGE. (2022). Brasil 500 anos. Acesso em 27 de 02 de 2022, disponível em Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/japoneses/razoes-da-emigracao-japonesa.html
Lowry, D. (2011). O Dojo e seus significados. Um guia para os rituais e etiqueta das artes marciais japonesas (1ª ed.). (J. S. Freire, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.
SANCHES, E. J. (09 de Fevereiro de 2022). A tradição no Karate.
Senado, A. (24 de 08 de 2018). 110 anos da imigração japonesa no Brasil serão comemorados em sessão especial. Acesso em 27 de 02 de 2022, disponível em Senado notícias: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/08/24/110-anos-da-imigracao-japonesa-no-brasil-serao-comemorados-em-sessao-especial
TOKITSU, K. (2012). Ki e o Caminho das Artes Marciais. (L. C. Cintra, Trad.) São Paulo, SP, Brasil: Cultrix.